29 de dezembro de 2009

John Bull's Other Island

"Quando eu digo que sou irlandês, quero dizer que nasci na Irlanda e que minha língua nativa é o inglês Swift, e não o jargão execrável dos jornais londrinos de meados do século XIX. Minha linhagem é a linhagem da maioria dos ingleses: ou seja, não tenho em mim nenhum traço da tensão comercialmente importada do espanhol do norte, que se passa por irlandês aborígine: sou um irlandês típico, genuíno, oriundo das invasões dinamarquesa, normanda, cromwelliana e (claro) escocesa. Sou violenta e arrogantemente protestante por tradição de família; mas o governo inglês pode contar com minha lealdade: sou bastante inglês para ser um republicano e um autonomista inveterado. É verdade que um de meus avós era orangista; mas então sua irmã era abadessa; e seu tio, orgulho-me de dizê-lo, foi enforcado como rebelde. Quando olho ao meu redor e vejo esses cosmopolitas híbridos, envenenados pelo favela ou mimados pela praça, que hoje se autoproclamam ingleses, e os vejo maltratados pela guarnição protestante irlandesa de um modo que nenhum inglês permite sê-lo hoje por um inglês; quando vejo os irlandeses em toda a parte gabando-se de ser perspicazes, sadios, duramente calejados contra os sentimentalismos, suscetabilidades e credulidades pueries que fazem do inglês a presa fácil de qualquer charlatão e o idólatra de qualquer néscio, percebo que a Irlanda é o único lugar na Terra que ainda produz o inglês ideal da história."

SHAW, George Bernard. 1856-1950. John Bull's Other Island (1904). Rev. por Standart Edition, 1947. Perface to politicians: what is an Irishman? Londres: Constable & Company, 1931, p.15-16.

24 de dezembro de 2009

História do Cerco de Lisboa

"Nos seus apontamentos para a carta a Osberno, notou Frei Rogeiro, embora de tal não viesse a fazer menção na redacção definitiva, uma minuciosa descrição da chegada do cavaleiro Henrique ao arraial da Porta de Ferro, incluindo certa alusão, pelos vistos irrefreável, a mulher que com ele vinha, Ouroana de seu nome, formosa como o amanhecer, misteriosa como o nascer da lua, foram expressões do frade, que a prudência disciplinar, por um lado, e o pudor parece que melindroso do destinatário, por outro, aconselharam a expungir. Ora, é bem possível que este e outros recalcados movimentos de alma tenham sido a causa, por via de sublimação, do cuidado com que Frei Rogeiro passou a acompanhar os ditos e feitos do cavaleiro alemão, antes, mas sobretudo depois da sua infeliz morte, mas não desgraçada, como a seu tempo se tornará patente. Em por claro, diremos que não podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites, não encontrou melhor exutório, salvo outro qualquer secreto, que exaltar até à desmedida o homem que se gozava do corpo dela. Da complexidade da alma humana tudo podemos esperar."

SARAMAGO, José, 1922-2010. História do Cerco de Lisboa, Portugal, 1989.

30 de novembro de 2009

Os Brasileiros: Livro I - Teoria do Brasil

Nota do blogueiro: quebrei a regra de postar somente um parágrafo do livro por este não ser, como de costume, um romance ou uma poesia; trata-se de uma definição antropológica do conflito estabelecido entre as diferentes classes que compõem a sociedade brasileira. Não poderia, portanto, limitar tal explicação a menos do que aqui apresento.

"(...) A atribuição de uma postura progressista ao patronato moderno se deve, em alguns casos, à presença de seu corpo fiscal ou cartorial. Este, tendo como sua área natural de operação e expansão o próprio Estado, mimetiza-se e se adapta segundo o caráter do governo que exerça o poder, fazendo-se progressista, reformista, nacionalista ou reacionário, conforme estas posições lhe assegurem ou não o favorecimento de contratos de obras ou o abastecimento de órgãos estatais.

A postura política dos setores intermediários, caracterizada embora pela ambigüidade a que nos referimos, é fundamentalmente conversadora e até reacionária. Contribui para isto o caráter brutalmente desigualitário da estrutura social vigente que coloca diante de seus olhos, e até introduz em seus lares como serviçais, vastas camadas miseráveis, cujas carências constrastam com a condição relativamente privilegiada das classes médias. Contribui também a presença de setores das classes subalternas, como os operários especializados às vezes melhor remunerados, mas vistos como rudes e inferiores pela sua posição social, sua educação precária e seus hábitos de vida menos exigentes quanto a aspectos formais. Nestas circunstâncias, os setores intermédios entram em competição ativa com as classes subalternas, sobretudo com as camadas mais altas dela, cujo empenho em melhorar suas condições de vida e ascender socialmente comparece, a seus olhos, como uma ameaça às vantagens que desfrutam, porque tenderia a dissolver alguns desníveis nos padrões de consumo e nos estilos de vida, altamente apreciados pelos setores médios como suposta expressão de sua superioridade. Tudo isto introjeta neles um sentimento de rancor e amargura pronto a eclodir, tanto com respeito aos que estão acima deles como e, principalmente, contra os que estão abaixo.

As classes subalternas constituem o setor potencialmente mais dinâmico da estrutura social por sua condição de força de trabalho básica do sistema produtivo, que engloba o contigente tecnicamente mais qualificado, das empresas modernas, e o único capacitado a impor suas reivindicações através de greves. Representa, também, o principal contigente politicamente autônomo das populações urbanas, o que lhes confere influência e peso eleitoral em um regime democrático. Este dinamismo potencial - que se expressa sempre que surgem condições mínimas para isto - opondo as classes subalternas à estrutura de poder, concentra nelas todo o peso da repressão, a fim de paralisá-las como classe virtualmente capacitada a mudar a ordem vigente para substituí-la por outra que lhe seja mais favorável. Embora, teoricamente, seu horizonte de aspirações corresponda a uma postura revolucionária predisposta a transformar a sociedade, de fato, seu grau de politização a leva a reivindicar apenas uma ordem social melhor. Contribui para isto - além da dificuldade inerente a todos os proletariados para operar o trânsito de uma consciência ingênua a uma consciência crítica - sua posição de classe intersticial que tem abaixo de si o imenso bolsão dos marginalizados, vivendo em condições muito mais precárias nas quais teme cair por desclassamento.

Por tudo isso, as massas marginalizadas são, na realidade, a classe oprimida da estrutura social, embora não tenham - e dificilmente venham a construir - uma consciência de si correspondente a esta condição. Sua visão de mundo é uma mistura de arcaísmo, proveniente de antigas tradições orais hauridas do campo, e de modernidade elaborada à luz de imagens difundidas pelos modernos meios de comunicação que as atingem. Sua visão de si é a de uma pobre gente que vegeta em um mundo discricionário onde um Deus arbitrário luta contra demônios que não podem ser domados.

No caso do Brasil, cujas classes dominantes se formaram no escravismo com uma postura socialmente irresponsável com respeito às classes subalternas e, sobretudo, às oprimidas, cristalizou-se uma estrutura social cruamente desigualitária que gera enormes tensões, dificultando ao extremo a conciliação de classes. Embora os conflitos raciais sejam menores que em outras partes, a distância social que separa os ricos e remediados dos pobres e, principalmente, dos miseráveis, não podia ser maior. Não cabe aqui nenhuma instituição democrática ou dignificadora. Todos sabem que a igualdade perante a lei é uma igualdade dos pares, que são os patrões e os patrícios e, no máximo, a 'gente boa' dos setores intermédios; que ela dificilmente se aplica à subgente subalterna e jamais à não-gente marginalizada.

Por tudo isto, a preocupação fundamental das classes dominantes é a manutenção da ordem. Ontem, elas sabiam que uma revolta de escravos, que se expandisse, desencadearia ódios que fariam sangrar toda a sociedade, destruindo as bases da convivência social. Hoje elas temem que, caso as classes subalternas cheguem a expressar as próprias aspirações, se torne inevitável sua própria erradicação do comando da estrutura do poder e talvez também do papel de gestores do sistema econômico. Mais ainda, porém, elas temem uma rebilão das classes oprimidas que desataria agravos secularmente contidos, capazes de colocar em xeque toda a estrutura social.

Uma classe dominante desvairada por estes temores mortais só tem uma preocupação obsessiva que é a da ordem a qualquer custo. Ela sabe perfeitamente que as classes subalternas apenas aspiram a uma melhoria de suas condições de vida e de trabalho e de oportunidades de ascensão social para seus filhos, através da educação; e que as classes oprimidas apenas reivindicam o simples direito ao trabalho regular como assalariados. Estas singelas aspirações e reivindicações poderiam, obviamente, ser atendidas, desde que a estrutura de poder redefinisse alguma de suas diretrizes básicas, como o monopólio da terra, a espoliação estrangeira e a precedência absoluta dos interesses privados sobre o bem comum. Estas inovações só representariam perdas de riqueza, poder e privilégios para certos setores, sobretudo os mais arcaicos. O que impede, porém, a reordenação política que corresponderia aos objetivos do que seria uma 'burguesia nacional progressista' é o caráter monoliticamente solidário de toda a classe dominante. É o temor co-participado por todos os privilegiados de que, uma vez aberta a ordenação social à redefinição, eclodiria um processo revolucionário incontrolável, conducente ao socialismo.

Assim se verifica que, paradoxalmente, no plano ideológico, as classes dominantes contruíram uma consciência de classe correspondente à sua posição irredutível à ameaça virtual de uma revolução socialista. As classes dominadas, porém, estão longe de construírem sua própria consciência de classe correspondente ao desafio histórico de se fazerem os construtores de uma sociedade socialista."

RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros: Livro I - Teoria do Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1978, p. 96-99.

3 de novembro de 2009

Introdução a uma Verdadeira História do Cinema

"Hoje acho que um filme não deve ser feito sempre com os mesmos motivos... e é por isso que não é preciso fazê-los sempre da mesma maneira. Hoje em dia, o fato de haver o vídeo, os filmes de amador, ou uma infinidade de coisas... pode-se fazer... Já não é verdade que um filme custa caro; alguns filmes custam caro, outros são baratos; e, às vezes, certos momentos de filmes não precisam ser filmes, do mesmo modo que, com as frases que a gente diz no decorrer do dia, não tentamos fazer um romance; isto faz parte do romance da nossa vida, mas não tentamos fazer com que a frase que dizemos ao comprar um quilo de carne ou ao tomar um táxi... que tudo isso componha um todo harmonioso e depois a gente diga à tarde: 'Oh, que bela obra eu fiz hoje!' A mesma coisa acontece com os filmes, isso vale para eles."

GODARD, Jean-Luc, 1930-. Introdução a uma Verdadeira História do Cinema, França, 1980.

20 de outubro de 2009

Qualquer Ferro Velho

"O próprio governador de Gibraltar lhe dissera que não era coisa que se fizesse beber com estranhos em bares estrangeiros e depois apunhalá-los em vielas escuras. Mesmo na guerra total tinha-se de respeitar as regras do jogo. Então havia uma diferença, havia, entre guerra e assassinato? Certamente que sim. A essência da guerra moderna era que você matasse à distância, anonimamente e sem animosidade imediata. Você matava, ou ordenava que matassem com espírito generoso, e sustentava a generosidade de espírito por não ter consciência direta da agonia e posterior desaparecimento de sua vítima. A história da guerra, como da própria civilização, da qual a guerra era um aspecto, era a história de um crescente distanciamento e anonimato. Será que o sargento Jones pensava que as valentes tripulações dos bombardeiros de saturação que tão poderosamente esmigalharam casas de velhos e enfermeiras de maternidades seriam capazes de continuar suas missões heróicas se realmente testemunhassem os seres humanos em vez dos resultados estratégicos de suas devastações?"

BURGESS, Anthony, 1917-1993. Qualquer Ferro Velho (Any Old Iron), Inglaterra, 1987.

24 de setembro de 2009

Tônio Kroeger

"Nesta noite levou consigo sua imagem, com a loura e grossa trança, com os olhos azuis, oblíquos e risonhos, com um selim de sardas, delicadamente marcado, sobre o nariz, e não conseguiu dormir porque ouvia o som de sua voz, tentava baixinho imitar a entonação com a qual pronunciava a palavra e ao fazê-lo sentia-se arrepiar. A experiência fê-lo saber que era o amor, apesar de ter certeza que o amor deveria trazer-lhe muita dor, tormentos e humilhações, e que além disso destruía a paz e deixava o coração transbordar com melodias sem que se encontrasse sossego para dar forma a alguma coisa e tranqüilamente forjar uma peça inteiriça. Assim mesmo aceitava-o, entregava-se completamente e zelava por ele com as forças de sua alma, pois sabia que o amor enriquecia e dava vida e ele ansiava por ser rico e vivo em vez de na tranqüilidade forjar algo concreto..."

MANN, Thomas. Tônio Kroeger, Alemanha, 1903.

14 de setembro de 2009

Os Buddenbrook

"A consulesa, apoiada em várias almofadas, encontrava-se de costas. As mãos, essas belas mãos, entremeadas por veias de um azul pálido, e que agora pareciam tão magras, definhadas por completo, acariciavam a colcha, incessante e apressadamente, numa precipitação trêmula. A cabeça, coberta por uma touca branca, virava-se sem interrupção, em horripilante ritmo pendular. A boca, cujos lábios pareciam ser puxados para dentro, abria-se e fechava-se bruscamente, a cada uma das penosas tentativas de respiração. Os olhos encovados vagavam em busca de socorro, para, de quando em vez, se fitarem com expressão comovente de inveja numa das pessoas presentes que estavam vestidas e podiam respirar, que pertenciam à vida e que nada mais sabiam senão fazer o sacrifício amoroso de manter o olhar cravado nesse quadro. E a noite avançava sem que houvesse uma alteração."

MANN, Thomas, 1875-1956. Os Buddenbrook (Decadência Duma Família), Alemanha, 1901.

18 de agosto de 2009

Notas do Subsolo

"Em algumas ocasiões, era tão horrível para mim ir à repartição que eu chegava ao ponto de, muitas vezes, voltar doente do trabalho. Mas, de repente, sem mais nem menos, começava uma fase de ceticismo e indiferença (comigo tudo acontecia em fases), e eu mesmo começava a rir de minha intolerância e minhas aversões e censurava a mim mesmo pelo meu romantismo. Num determinado momento, não queria falar com ninguém; em outro, não só procurava conversa com alguém, como até mesmo decidia tornar-me seu amigo. De repente, sem mais nem menos, toda a aversão desaparecia. Quem sabe ela nunca tivesse existido realmente em mim, e fosse apenas pose tirada dos livros? Até agora não solucionei essa questão."

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do Subsolo. Rússia, 1864.

5 de agosto de 2009

Esboço para uma Teoria das Emoções

"Essa 'assunção' de si que caracteriza a realidade humana implica uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que seja esta compreensão. 'No ser desse existente, ele se relaciona ele próprio com seu ser.' É que, de fato, a compreensão não é uma qualidade vinda de fora à realidade humana, é sua própria maneira de existir. Assim, a realidade humana que é eu assume seu próprio ser ao compreendê-lo. Essa compreensão é a minha. Portanto, sou antes de qualquer coisa um ser que compreende mais ou menos obscuramente sua realidade de homem, o que significa que me faço homem ao compreender-me como tal. Posso então me interrogar e, sobre as bases dessa interrogação, levar a cabo uma análise da 'realidade-humana', que poderá servir de fundamento a uma antropologia. Aqui tampouco, naturalmente, não se trata de introspecção, primeiro porque a introspecção só depara com o fato, depois porque minha compreensão da realidade humana é obscura e inautêntica. Ela deve ser explicitada e corrigida. Em todo caso, a hermenêutica da existência vai poder fundar uma antropologia e essa antropologia servirá de base a toda psicologia. Assim estamos na situação inversa da dos psicólogos, uma vez que partimos dessa totalidade sintética que é o homem e estabelecemos a essência do homem antes de estrear em psicologia."

SARTRE, Jean-Paul. 1905-1980. Esboço para uma teoria das emoções / Jean-Paul Sartre; tradução de Paulo Neves. - Porto Alegre: L&PM, 2008.

2 de agosto de 2009

Trilogia Suja de Havana

"Esse era o meu problema e o meu desafio: aprender a viver e a desfrutar dentro de mim. E a questão não é simples: hindus, chineses, japoneses, todos os que têm culturas milenares, dedicam boa parte do seu tempo a desenvolver filosofias e técnicas de vida interior. Mesmo assim, todo ano se suicidam no mundo uns tantos milhares de pessoas, esmagadas por sua própria solidão. E não é que o sujeito escolha ficar sozinho. É que, pouco a pouco, vai-se ficando sozinho. E não há remédio. É preciso resistir. Chega-se a uma imensa planície deserta e não se sabe que porra fazer. Muitas vezes se pensa que o melhor é não pensar muito em si mesmo e na maldita solidão, que fica mais aguda quando se está isolado e em silêncio. Bom, pois é preciso entrar em ação. E a gente sai por aí. Em busca de um amigo ou de uma mulher que nos dê um pouco de sexo. Não sei."

GUTIERREZ, Pedro Juan. Trilogia Suja de Havana. Cuba, 1998.

27 de julho de 2009

That Sacred Closet Entitled Memory

"That sacred Closet when you sweep -
Entitled 'Memory' -
Select a reverential Broom -
And do it silently.

'Twill be a Labor of surprise -
Besides Identity
Of other Interlocutors
A probability.

August the Dust of that Domain -
Unchallenged - let it lie -
You cannot supersede itself
But it can silence you -"

"Ao varrer o sagrado desvão
Denominado Memória,
Escolhe uma vassoura reverente
E faz em silêncio teu trabalho.

Será um labor de surpresas -
Além da própria identidade,
Outros interlocutores
São uma possibilidade.

Nesses domínios é nobre a poeira,
Deixe que repouse intocada -
Não tens como removê-la,
Mas ela pode silenciar-te."

DICKINSON, Emily. 1830-1886. Poemas escolhidos / Emily Dickinson; tradução de Ivo Bender. - Porto Alegre: L&PM, 2007.

19 de julho de 2009

A Morte de Ivan Ilitch

"Era de manhã. Ele sabia que era de manhã unicamente porque Guerássim se fora e o criado Piotr viera apagar as velas, levantar as cortinas e silenciosamente começar a arrumação do quarto. Fosse manhã ou noite, sexta-feira ou domingo, não haveria diferença, tudo era igual para Ivan Ilitch: a dor surda, implacável, incessante; a sensação de que a vida não parava de fugir; a certeza de que a odiosa e temida morte se aproximava como a única realidade; e sempre a mesma mentira. Que importância tinham, portanto, as semanas, os dias, as horas?".

TOLSTOI, Liev. 1828-1910. A Morte de Ivan Ilitch. Rússia, 1886.

11 de julho de 2009

Como Vivem Os Mortos

"Sempre tive talento para a histeria, para ultrapassar a negra borda de um humor, mas esta negra borda é tão maior. É um Niágara, sugando para dentro dela toda a água da minha vida. Sinto-me como deve se sentir a vítima de um ataque cardíaco - metade de meu mundo se foi. Metade daquela jarra plástica de água; metade daquela caixa de Kleenex; metade já meio comida daquela porra daquele bolo Battenberg que a tarada da minha filha me trouxe ontem à tarde; metade daquele lenço de papel amassado; daquele lápis Staedtler HB; daquele grão de poeira. Pela primeira vez na minha vida posso sentir, inteira e incontrovertidamente, o que é não ser eu. Como é ser eu me sentindo não eu. É tão solitário. Tão fodidamente solitário. Quem haveria de pensar que eu, que levei uma vida que conheceu tanta solidão, tenha agora de encarar a solidão da morte? Sou soluçada por ataques. Ah, meu eu - por que me abandonaste?"

SELF, Will. Como vivem os mortos / Will Self; tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2005.

4 de julho de 2009

Armance

"Nunca Otávio se encontrara numa posição tão fatal aos seus juramentos contra o amor. Julgava ter brincado, como de costume, com Armance, e a brincadeira tomara de repente uma feição grave e imprevista. Sentia-se arrastado, já não raciocinava, estava no cúmulo da felicidade. Foi um desses rápidos instantes em que o acaso algumas vezes concede, para a compensação de tantos males, às almas destinadas a padecer com energia. A vida comprime-se nos corações, o amor faz esquecer tudo quanto não é divino como ele, e vive-se mais nalguns instantes do que durante longos períodos."

STENDHAL. 1783-1842. Armance. França: 1827.

24 de junho de 2009

A Cartuxa de Parma

"Manteve-se firme e não tornou a olhar a Marquesa Crescenzi, mas Madame P... cantou outra vez, e a alma de Fabrício, aliviada pelas lágrimas, atingiu um estado de perfeito repouso. Então, a vida apareceu-lhe sob um novo aspecto. 'Poderia eu pretender - pensou - ser capaz de esquecer desde os primeiros momentos? Ser-me-ia isso possível?' Chegou a esta idéia: 'Poderei eu ser mais infeliz do que tenho sido desde há dois meses? E se nada pode aumentar a minha angústia, por que hei eu de resistir ao prazer de a contemplar? Ela esqueceu os seus juramentos, é leviana: não o são todas as mulheres? Mas quem pode negar que ela tem uma beleza celestial? Tem um olhar que me põe em êxtase, ao passo que sou obrigado a fazer um esforço sobre mim próprio para olhar as mulheres que passam por ser as mais belas! Pois bem! Por que não me hei de deixar extasiar? Será pelo menos um momento de sossego'."

STENDHAL. 1783-1842. A Cartuxa de Parma. França: 1839.

28 de maio de 2009

O Vermelho e o Negro

"'Pois bem', acrescentou Julien tristemente, mas sem cólera, 'apesar de sua avareza, o meu pai vale mais do que todos esses homens. Ele nunca me estimou. E eu acabo de encher-lhe as medidas, desonrando-o com uma morte infamante. Esse temor de não ter dinheiro, esse conceito exagerado da maldade dos homens, à que se chama avareza, faz com que ele veja um prodigioso motivo de consolação e de segurança numa soma de trezentos ou quatrocentos luízes que eu lhe possa deixar. Um domingo, depois do jantar, ele mostrará o seu ouro a todos que o invejam em Verrières. Por tal preço, dirá o seu olhar, qual de vós não ficaria encantado em ter um filho guilhotinado?'."

STENDHAL. 1783-1842. O Vermelho e o Negro. França: 1832.

29 de abril de 2009

A religiosa

"Fazer voto de pobreza é dedicar-se por juramento a ser preguiçoso e ladrão; fazer voto de castidade é prometer a Deus a infração constante da mais bela e mais importante de suas leis; fazer voto de obediência é renunciar à prerrogativa inalienável do homem, a liberdade. Quando se observam esses votos, é-se criminoso; quando não se observam, é-se perjuro. A vida claustral é a de um fanático ou a de um hipócrita".

DIDEROT, Denis. 1713-1784. A religiosa. França: 1796.

6 de abril de 2009

A República

"Sócrates - Exatamente por isso os homens honestos não querem assumir o governo nem por dinheiro nem por honrarias. Na realidade, não querem ser considerados mercenários que exigem abertamente um salário, nem querem ser considerados ladrões ao tirá-lo de modo secreto de seu encargo. Como não são ambiciosos, não querem também governar pelas honrarias. Para induzí-los a isso, é preciso forçá-los e puní-los. Isso decorre talvez do fato de achar desonroso chegar ao poder por própria iniciativa, sem esperar ser compelido a isso. Mas o castigo supremo consiste em ser governados por quem é moralmente inferior, no caso em que o cidadão honesto não queira assumir o poder. É o temor desse castigo que, segundo minha opinião, impele os melhores a governar, se necessário. E então eles chegam ao poder não como em direção a alguma coisa de bom, nem para nele permanecer comodamente, mas como em direção a um dever inevitável, porque não podem confiar suas funções a pessoas melhores ou pelo menos iguais a eles. Se o Estado fosse composto de homens honestos, talvez haveria uma corrida para não governar, exatamente ao contrário do que acontece agora. Assim, seria evidente que o verdadeiro governante não visa por natureza seu interesse pessoal, mas o dos súditos. Todo homem sensato, porém, preferiria receber vantagens de outros, do que empenhar-se ele próprio para o interesse de outrem. De qualquer modo, não admito de maneira alguma que a justiça, como diz Trasímaco, seja o interesse do mais forte. Este ponto, contudo, o veremos melhor a seguir. Parece-me muito mais importante o que Trasímaco disse há pouco, isto é, que a existência do homem injusto é melhor do que aquela do justo. E você, Glauco, que tese escolheria? Qual das duas lhe parece mais verdadeira?"

PLATÃO. 428/27–347 a.C. A República. São Paulo: Editora Escala, 2007.

2 de abril de 2009

Elingoso Hidalgo Don Quixote De La Mancha

"Yace aquí el hidalgo fuerte
que a tanto extremo llegó
de valiente, que se advierte
que la muerte no triunfó
de su vida con su muerte.

Tuvo a todo el mundo en poco,
fue el espantajo y el coco
del mundo, en tal coyuntura,
que se acreditó su ventura
morir cuerdo y vivir loco."

"Jaz aqui o fidalgo forte
que a tal denodo chegou
que se descubra e se exorte
que a morte não triunfou
de sua vida com sua morte.

Teve o mundo inteiro em pouco;
foi o espantalho e o coco
do mundo, em tal conjuntura,
que abonou sua aventura
morrer cordo e viver louco."

CERVANTES, Miguel De. 1547-1616. Elingoso Hidalgo Don Quixote De La Mancha. São Paulo: Real Academia Española / Asociación de Academias de la Lengua Española, 2004.

20 de março de 2009

A insustentável leveza do ser

"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso o que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo 'esboço' não é a palavra certa, porque um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro".

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser, 1983.

3 de março de 2009

Homem no escuro

"Uma manhã, na primavera de 1987, sua empregada me telefonou num estado de quase-histeria. Tinha acabado de entrar no apartamento de Betty, usando a chave que recebera para a limpeza semanal, e encontrou minha irmã deitada na cama. Peguei emprestado o carro do vizinho, dirigi até Nova Jersey e identifiquei o corpo para a polícia. O choque de ver Betty daquele jeito: tão imóvel, tão longe, tão terrivelmente, terrivelmente morta. Quando me perguntaram se eu queria que o hospital fizesse uma autópsia, respondi que não precisava. Só havia duas possibilidades. Ou seu corpo tinha parado de funcionar, ou Betty tinha tomado pílulas, e eu não queria saber a resposta, pois nenhuma das duas coisas contaria a história verdadeira. Betty morreu porque estava com o coração partido. Algumas pessoas riem quando escutam essa frase, mas isso é porque elas não conhecem nada do mundo. Pessoas morrem porque estão com o coração partido. Acontece todo dia e vai continuar a acontecer, até o fim dos tempos".

AUSTER, Paul. Homem no Escuro, Companhia das Letras, 2008.