29 de abril de 2011

O Século das Luzes

"E a singularidade de tudo, a violência de um acontecimento que tinha tirado todo mundo de seus hábitos de rotina, contribuía para agravar em Sofia o sem-fim de desassossegos contraditórios que lhe causara, ao despertar, a lembrança do ocorrido na noite anterior. Aquilo formava parte da vasta desordem em que vivia a cidade, integrando-se numa cenografia de cataclismas. Mas um fato sobrepujava em importância a queda das muralhas, a ruína dos campanários, o naufrágio das naves: havia sido desejada. E o fato era tão incomum, tão imprevisto, tão inquietante, que relutava em admitir-lhe a realidade. Em poucas horas ia saindo da adolescência, com a sensação que sua carne amadurecera à proximidade de um desejo de homem. Haviam-na visto como Mulher, quando não podia se ver a si mesma como Mulher - imaginar que os demais lhe concedessem categoria de Mulher. 'Sou uma Mulher', murmurava, ofendida e como que oprimida por uma carga enorme posta em seus ombros, olhando-se no espelho como se olhasse outra pessoa, inconformada, vexada por alguma fatalidade, achando-se comprida e desgraciosa, sem atrativos com aquelas cadeiras estreitas demais, os braços magros e aquela ausência de forma nos seios que, pela primeira vez, lhe dava desgosto com seu corpo. O mundo estava povoado de perigos. Ela saía de uma transição sem riscos para outra, a das provas e comparações de cada qual, entre sua imagem autêntica e a refletida, o que não se registraria sem dilacerações nem vertigens..."

CARPENTIER, Alejo, 1904-1980. O Século das Luzes (El Siglo de las Luces), Cuba, 1952.

9 de abril de 2011

Os Prêmios

"Sentados em torno da mesa, Paula e Raúl estavam ao mesmo tempo do outro lado do espelho; quando sua voz se misturava aqui e ali com a deles, era como se um elemento excêntrico penetrasse na ampla esfera de suas vozes, que dançavam, levemente enlaçadas, agarrando-se e soltando-se alternadamente no ar. Poder trocar de lugar com Raúl, ser Raúl sem deixar de ser ele mesmo, correr tão cegamente e tão desesperadamente que o muro invisível se despedaçasse e o deixasse entrar, recolher todo o passado de Paula num só abraço que o colocasse a seu lado para sempre, possuí-la virgem, adolescente, jogar com ela os primeiros jogos da vida, aproximar-se assim da juventude, do presente, do ar sem espelhos que os rodeava, entrar com ela no bar, sentar à mesa com ela, cumprimentar Raúl como a um amigo, falar o que estavam falando, olhar o que olhavam, sentir nas costas o outro espaço, o futuro inconcebível, mas que todo resto fosse deles, que esse ar de tempo que os envolvia agora não fosse o borbulhar irrisório rodeado de nada, de um ontem onde Paula era de outro mundo, de um amanhã onde a vida em comum não teria forças para atraí-la inteiramente a ele, fazê-la realmente e para sempre sua".

CORTÁZAR, Julio, 1914-1984. Os Prêmios (Los Premios), Argentina, 1969.