30 de novembro de 2009

Os Brasileiros: Livro I - Teoria do Brasil

Nota do blogueiro: quebrei a regra de postar somente um parágrafo do livro por este não ser, como de costume, um romance ou uma poesia; trata-se de uma definição antropológica do conflito estabelecido entre as diferentes classes que compõem a sociedade brasileira. Não poderia, portanto, limitar tal explicação a menos do que aqui apresento.

"(...) A atribuição de uma postura progressista ao patronato moderno se deve, em alguns casos, à presença de seu corpo fiscal ou cartorial. Este, tendo como sua área natural de operação e expansão o próprio Estado, mimetiza-se e se adapta segundo o caráter do governo que exerça o poder, fazendo-se progressista, reformista, nacionalista ou reacionário, conforme estas posições lhe assegurem ou não o favorecimento de contratos de obras ou o abastecimento de órgãos estatais.

A postura política dos setores intermediários, caracterizada embora pela ambigüidade a que nos referimos, é fundamentalmente conversadora e até reacionária. Contribui para isto o caráter brutalmente desigualitário da estrutura social vigente que coloca diante de seus olhos, e até introduz em seus lares como serviçais, vastas camadas miseráveis, cujas carências constrastam com a condição relativamente privilegiada das classes médias. Contribui também a presença de setores das classes subalternas, como os operários especializados às vezes melhor remunerados, mas vistos como rudes e inferiores pela sua posição social, sua educação precária e seus hábitos de vida menos exigentes quanto a aspectos formais. Nestas circunstâncias, os setores intermédios entram em competição ativa com as classes subalternas, sobretudo com as camadas mais altas dela, cujo empenho em melhorar suas condições de vida e ascender socialmente comparece, a seus olhos, como uma ameaça às vantagens que desfrutam, porque tenderia a dissolver alguns desníveis nos padrões de consumo e nos estilos de vida, altamente apreciados pelos setores médios como suposta expressão de sua superioridade. Tudo isto introjeta neles um sentimento de rancor e amargura pronto a eclodir, tanto com respeito aos que estão acima deles como e, principalmente, contra os que estão abaixo.

As classes subalternas constituem o setor potencialmente mais dinâmico da estrutura social por sua condição de força de trabalho básica do sistema produtivo, que engloba o contigente tecnicamente mais qualificado, das empresas modernas, e o único capacitado a impor suas reivindicações através de greves. Representa, também, o principal contigente politicamente autônomo das populações urbanas, o que lhes confere influência e peso eleitoral em um regime democrático. Este dinamismo potencial - que se expressa sempre que surgem condições mínimas para isto - opondo as classes subalternas à estrutura de poder, concentra nelas todo o peso da repressão, a fim de paralisá-las como classe virtualmente capacitada a mudar a ordem vigente para substituí-la por outra que lhe seja mais favorável. Embora, teoricamente, seu horizonte de aspirações corresponda a uma postura revolucionária predisposta a transformar a sociedade, de fato, seu grau de politização a leva a reivindicar apenas uma ordem social melhor. Contribui para isto - além da dificuldade inerente a todos os proletariados para operar o trânsito de uma consciência ingênua a uma consciência crítica - sua posição de classe intersticial que tem abaixo de si o imenso bolsão dos marginalizados, vivendo em condições muito mais precárias nas quais teme cair por desclassamento.

Por tudo isso, as massas marginalizadas são, na realidade, a classe oprimida da estrutura social, embora não tenham - e dificilmente venham a construir - uma consciência de si correspondente a esta condição. Sua visão de mundo é uma mistura de arcaísmo, proveniente de antigas tradições orais hauridas do campo, e de modernidade elaborada à luz de imagens difundidas pelos modernos meios de comunicação que as atingem. Sua visão de si é a de uma pobre gente que vegeta em um mundo discricionário onde um Deus arbitrário luta contra demônios que não podem ser domados.

No caso do Brasil, cujas classes dominantes se formaram no escravismo com uma postura socialmente irresponsável com respeito às classes subalternas e, sobretudo, às oprimidas, cristalizou-se uma estrutura social cruamente desigualitária que gera enormes tensões, dificultando ao extremo a conciliação de classes. Embora os conflitos raciais sejam menores que em outras partes, a distância social que separa os ricos e remediados dos pobres e, principalmente, dos miseráveis, não podia ser maior. Não cabe aqui nenhuma instituição democrática ou dignificadora. Todos sabem que a igualdade perante a lei é uma igualdade dos pares, que são os patrões e os patrícios e, no máximo, a 'gente boa' dos setores intermédios; que ela dificilmente se aplica à subgente subalterna e jamais à não-gente marginalizada.

Por tudo isto, a preocupação fundamental das classes dominantes é a manutenção da ordem. Ontem, elas sabiam que uma revolta de escravos, que se expandisse, desencadearia ódios que fariam sangrar toda a sociedade, destruindo as bases da convivência social. Hoje elas temem que, caso as classes subalternas cheguem a expressar as próprias aspirações, se torne inevitável sua própria erradicação do comando da estrutura do poder e talvez também do papel de gestores do sistema econômico. Mais ainda, porém, elas temem uma rebilão das classes oprimidas que desataria agravos secularmente contidos, capazes de colocar em xeque toda a estrutura social.

Uma classe dominante desvairada por estes temores mortais só tem uma preocupação obsessiva que é a da ordem a qualquer custo. Ela sabe perfeitamente que as classes subalternas apenas aspiram a uma melhoria de suas condições de vida e de trabalho e de oportunidades de ascensão social para seus filhos, através da educação; e que as classes oprimidas apenas reivindicam o simples direito ao trabalho regular como assalariados. Estas singelas aspirações e reivindicações poderiam, obviamente, ser atendidas, desde que a estrutura de poder redefinisse alguma de suas diretrizes básicas, como o monopólio da terra, a espoliação estrangeira e a precedência absoluta dos interesses privados sobre o bem comum. Estas inovações só representariam perdas de riqueza, poder e privilégios para certos setores, sobretudo os mais arcaicos. O que impede, porém, a reordenação política que corresponderia aos objetivos do que seria uma 'burguesia nacional progressista' é o caráter monoliticamente solidário de toda a classe dominante. É o temor co-participado por todos os privilegiados de que, uma vez aberta a ordenação social à redefinição, eclodiria um processo revolucionário incontrolável, conducente ao socialismo.

Assim se verifica que, paradoxalmente, no plano ideológico, as classes dominantes contruíram uma consciência de classe correspondente à sua posição irredutível à ameaça virtual de uma revolução socialista. As classes dominadas, porém, estão longe de construírem sua própria consciência de classe correspondente ao desafio histórico de se fazerem os construtores de uma sociedade socialista."

RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros: Livro I - Teoria do Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1978, p. 96-99.

3 de novembro de 2009

Introdução a uma Verdadeira História do Cinema

"Hoje acho que um filme não deve ser feito sempre com os mesmos motivos... e é por isso que não é preciso fazê-los sempre da mesma maneira. Hoje em dia, o fato de haver o vídeo, os filmes de amador, ou uma infinidade de coisas... pode-se fazer... Já não é verdade que um filme custa caro; alguns filmes custam caro, outros são baratos; e, às vezes, certos momentos de filmes não precisam ser filmes, do mesmo modo que, com as frases que a gente diz no decorrer do dia, não tentamos fazer um romance; isto faz parte do romance da nossa vida, mas não tentamos fazer com que a frase que dizemos ao comprar um quilo de carne ou ao tomar um táxi... que tudo isso componha um todo harmonioso e depois a gente diga à tarde: 'Oh, que bela obra eu fiz hoje!' A mesma coisa acontece com os filmes, isso vale para eles."

GODARD, Jean-Luc, 1930-. Introdução a uma Verdadeira História do Cinema, França, 1980.