4 de julho de 2018

A Fugitiva

"Enquanto isso, relia sua carta e, apesar de tudo, me sentia decepcionado com o pouco que uma carta contém de uma pessoa. Sem dúvida, as letras traçadas exprimem nosso pensamento, como também o fazem nossos traços fisionômicos: é sempre diante de um pensamento que nos encontramos. Mas, apesar de tudo, na pessoa, o pensamento só nos aparece depois de se haver difundido nessa corola do rosto desabrochado como um nenúfar. Isso, afinal de contas, o modifica muito. E, talvez, uma das causas de nossas perpétuas decepções em amor esteja nesses perpétuos desvios que fazem com que, à espera da pessoa ideal a quem amamos, cada encontro nos traga, em resposta, uma pessoa de carne em que já existe tão pouco do nosso sonho. Depois, quando reclamamos algo dessa pessoa, dela recebemos uma carta em que da pessoa mesma resta muito pouco, tal como, nas letras de álgebra, já não existe a determinação das cifras da aritmética, as quais, por sua vez, não encerram mais as propriedades das flores ou dos Frutos somados. E contudo, o amor, a criatura amada, suas cartas, são talvez, afinal de contas, traduções (por menos satisfatório que seja passar de uma a outra) da mesma realidade, pois essa carta que nos parece insuficiente quando a lemos, nós suamos frio enquanto ela não chegava, e basta para acalmar nossa angústia, quando não para saciar, com seus sinaizinhos negros, nosso desejo que sabe muito bem que ali só existe, apesar de tudo, a equivalência de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não realmente essas coisas."

PROUST, Marcel, A Fugitiva (Albertine Disparue), França, 1927.