tag:blogger.com,1999:blog-33666312917221740152024-03-13T18:26:20.371-03:00Recomende um Parágrafo"O conhecimento de diferentes literaturas é a melhor maneira de libertar um indivíduo da tirania de qualquer uma delas." - José MartíAndré O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.comBlogger95125tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-31076070267614167862023-07-04T23:40:00.001-03:002023-07-04T23:44:02.901-03:00Estética da Criação Verbal<p>"Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode se tornar mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que ocorre com maior frequência. O artista e o homem estão unificados em um indivíduo de forma ingênua, o mais das vezes mecânica: temporariamente o homem sai da "agitação do dia a dia" para a criação como para outro mundo "de inspiração, sons doces e orações". O que resulta daí? A arte é de uma presunção excessivamente atrevida, é patética demais, pois lhe cabe responder pela vida que, é claro, não lhe anda no encalço. "Sim, mas onde é que nós temos essa arte - diz a vida -, nós temos a prosa do dia a dia". (...) O sentido correto e não o falso de todas as questões antigas, relativas à inter-relação de arte e vida, à arte pura etc., é o seu verdadeiro <i>patos</i> apenas no sentido de que arte e vida desejam facilitar mutuamente sua tarefa, eximir-se da sua responsabilidade, pois é mais fácil criar sem responder pela vida e viver sem contar com a arte."</p><p>BAKHTIN, Mikhail. 1895-1975. Estética da Criação Verbal. 6a edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.</p>André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-66111175385757472542023-06-27T09:50:00.001-03:002023-07-04T01:32:52.592-03:00Balada<div><div>"Não conseguiu firmar o nobre pacto</div><div>Entre o cosmos sangrento e a alma pura.</div><div>Porém, não se dobrou perante o fato</div><div>Da vitória do caos sobre a vontade</div><div>Augusta de ordenar a criatura</div><div>Ao menos: luz ao sul da tempestade.</div><div>Gladiador defunto mas intacto</div><div>(Tanta violência, mas tanta ternura)."</div></div><div><br /></div><div>FAUSTINO, Mario. 1930-1962. <i>O homem e sua hora e outros poemas.</i> Pesquisa e organização: Maria Eugenia Boaventura Editora Companhia das Letras: 2002.</div>André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-70963112549044826852023-04-05T08:56:00.012-03:002023-05-09T01:03:23.250-03:00Regresso Ao Lar“Regressei, atravessei o salão e olho em volta. É a velha granja de meu pai. O
charco no meio. Objetos velhos e imprestáveis misturados impedem a passagem para
a escada do celeiro. O gato espreita da varanda. Um trapo esfarrapado, preso,
certa vez, a uma barra, enquanto alguém brincava, agita-se ao vento. Cheguei.
Quem haverá de me receber?
Quem espera atrás da porta da cozinha? A chaminé
fumega, estão preparando o café para a ceia. Sentes a intimidade, encontras-te
como em tua casa? Não o sei, não estou certo. É a casa de meu pai, mas todos
estão um junto ao outro, friamente, como se estivessem ocupados com seus
próprios assuntos, que em parte esqueci e em parte não conheci jamais. De que
posso lhes servir, que sou para eles, mesmo sendo o filho do pai, o filho do
velho proprietário rural? E não me atrevo a chamar da porta da cozinha, e apenas
escuto de longe, apenas de longe escuto, tenso sobre os meus pés, mas de maneira
tal que não pudesse ser surpreendido a escutar.E porque escuto de longe, não
percebo nada, salvo uma leve pancada de relógio, que ouço ou que talvez apenas
creio ouvir, chegando-me desde os dias da infância. O mais que acontece na
cozinha é segredo dos que ali estão sentados e que me ocultam. Quanto mais se
hesita diante da porta, mais estranho alguém se sente. Que tal se agora alguém a
abrisse e me fizesse uma pergunta? Porventura, eu mesmo não estaria, então, como
alguém que deseja esconder o seu segredo?"<div><br /></div><div>KAFKA, Franz, 1883-1924, conto “Regresso Ao Lar” (“Heimkehr”) provavelmente escrito entre novembro de 1923 e
janeiro de 1924, tradução brasileira de 1968 publicada na coletânea
<i>A Muralha da China</i> do Clube do Livro.
</div>Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-12897545963300032232020-05-07T23:20:00.000-03:002020-05-07T23:20:05.431-03:00O Amante"A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria haver alguém, mas não é verdade não havia ninguém. A história de uma pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte, a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui falo dos períodos secretos dessa mesma juventude, das coisas que ocultei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos. Comecei a escrever num ambiente que me obrigava ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral. Hoje, muitas vezes escrever pode não significar nada. Por vezes sei disto: a partir do momento em que não for, confundidas todas as coisas, ir ao sabor da vaidade e do vento, escrever é nada. A partir do momento em que não for, sempre, a confusão de todas as coisas numa única por essência inqualificável, escrever é nada mais que publicidade. Mas na maioria das vezes não tenho opinião sobre isso, vejo que todos os campos estão abertos, que não haverá mais muros, que a palavra escrita não saberá mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência fundamental não será mais respeitada, mas nem penso mais nisso."<br />
<br />
DURAS, Marguerite, <i>O Amante (L'Amant)</i>, França, 1984.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-18179538799821204932019-09-29T02:25:00.001-03:002019-09-29T02:25:42.356-03:00O Cânone Ocidental"Falstaff, no maravilhoso curso de seu destino nos palcos, provocou um coro de moralização. Alguns dos melhores críticos e especuladores foram particularmente ferinos; entre os epítetos, estão 'parasita', 'covarde', 'fanfarrão', 'corruptor', 'sedutor', além dos simplesmente palpáveis 'glutão', 'pau d'água' e 'putanheiro'. Meu julgamento favorito é o 'um velho apalermado e repugnante' de George Bernard Shaw, uma reação que atribuo à secreta percepção de Shaw de que não podia igualar-se a Falstaff em humor, e portanto não podia preferir sua própria mente à de Shakespeare com exatamente a mesma facilidade e confiança que tão freqüentemente afirmava. Shaw, como todos nós, não podia enfrentar Shakespeare sem uma compreensão antiética a si mesma, o reconhecimento da estranheza e familiaridade ao mesmo tempo."<br />
<br />
BLOOM, Harold. 1930-. O Cânone Ocidental - Os Livros e a Escola do Tempo. 2ª edição. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva: 1995, pág. 55.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-27291913623080385832019-09-22T23:31:00.000-03:002019-09-22T23:31:34.737-03:00Os Desvalidos"A partir dessa descaída, ocioso e judiado, enquanto aturava a espera de alguma oportunidade pra se botar a um novo ramo, Coriolano se dana a ler as brochuras de histórias em prosa e verso, que apenas folheadas e paparicadas, há anos o aguardavam , amontoadas em poeira, uma vez que a consumição da química lhe engolira todo o tempo disponível. E como levou mais de ano sem arrumar uma triste colocação, leu com tal afinco e tal prazer que amoleceu as preocupações, enfiado no seu cancioneiro de tão boa gente. Ainda hoje soletra de memõria quase toda <i>A vida de Cancão de Fogo e seu testamento</i>, e <i>Os doze pares de França</i>. E se leitura enchesse barriga, palavra que ele continuaria galopando dentro desses franzinos compêndios sem parar, gastando assim a vontade que o toma desde os tempos em que conheceu o tio Filipe, de falinha de azougue e natureza velada. Mas chamado por um negócio vantajoso, desses raríssimos acasos que só se topa uma vez em toda a vida, Coriolano fecha a livralhada, que é muito difícil conciliar leitura com algum trabalho duro que se converte em dinheiro, e se volta a montar um fabrico de bombom de mel de abelha, facilitado pelos cachos e ramadas de flores que cobriam as matas da redondeza, onde os ocos dos paus se lascavam transbordados, lambuzando os grossos troncos a canadas de bom mel. De forma que a coisa já nasceu de vento em popa!"<br />
<br />
DANTAS, FRANCISCO J. C. Os Desvalidos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Formato: ePub, posição 305.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-35755866161606259192019-09-12T23:00:00.000-03:002019-09-12T23:02:01.135-03:00Um Copo de Cólera<div>
"Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo, e não no que ela ia fazendo, por isso eu me sentei na beira da cama e fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante, e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto, deixando que a barra da calça tocasse ligeiramente o chão ao mesmo tempo que cobria parcialmente meus pés com algum mistério, sabendo que eles, descalços e muito brancos, incorporavam poderosamente minha nudez antecipada, e logo eu ouvia suas inspirações fundas ali junto da cadeira, onde ela quem sabe já se abandonava ao desespero, atrapalhando-se ao tirar a roupa, embaraçando inclusive os dedos na alça que corria pelo braço, e eu, sempre fingindo, sabia que tudo aquilo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns pés, e muito especialmente pelos meus, firmes no porte e bem feitos na escultura, um tanto nodosos nos dedos, além de marcados nervosamente no peito por veias e tendões, sem que perdessem contudo o jeito tímido de raiz tenra, e eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes até o banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cobria, e logo eu fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar "é este canalha que eu amo", e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si só uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pêlos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus) caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos exasperados aos estertores da mais alta exaltação, e pensei ainda no salto perigoso do reverso, quando ela de bruços me oferecia generosamente um outro pasto, e em que meus braços e minhas mãos, simétricos e quase mecânicos, lhe agarravam por baixo os ombros, comprimindo e ajustando, área por área, a massa untada dos nossos corpos, e ia pensando sempre nas minhas mãos de dorso largo, que eram muito usadas em toda essa geometria passaional, tão bem elaborada por mim e que a levava invariavelmente a dizer em franca perdição "magnífico, magnífico, você é especial", e eu daí entrei pensando nos momentos de renovação, nos cigarros que fumávamos seguindo a cada bolha envenenada de silêncio, quando não fosse ao correr das conversas com café da térmica (escapávamos da cama nus e íamos profanar a mesa da cozinha), e em que ela tentava me descrever sua confusa experiência do gozo, falando sempre da minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades, me falando sobretudo do quanto eu lhe ensinei, especialmente da consciência no ato através dos nossos olhos que muitas vezes seguiam, pedra por pedra, os trechos todos de uma estrada convulsionada, e era então que eu falava da inteligência dela, que sempre exaltei como a sua melhor qualidade na cama, uma inteligência ágil e atuante (ainda que só debaixo dos meus estímulos), excepcionalmente aberta a todas as incursões, e eu de enfiada acabava falando também de mim, fascinando-a com as contradições intencionais (algumas nem tanto) do meu caráter, ensinando entre outras balelas que eu canalha era puro e casto, e eu ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em muitas outras coisas enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de volta no corredor, e foi então só o tempo de eu abrir os olhos pra inspecionar a postura correta dos meus pés despontando fora do lençol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que brotavam no peito e nos dedos mais longos, lhes davam graça e gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos, sentindo que ela ia entrar no quarto, e já adivinhando seu vulto ardente ali por perto, e sabendo como começariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos."</div>
<div>
<br /></div>
<div>
NASSAR, Raduan. 1935-. Um Copo de Cólera. 1.ed. 1978.</div>
André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-9204216128165135442019-01-07T15:46:00.002-02:002019-01-07T15:49:14.447-02:00O Crime de Sylvestre Bonnard"- Quantos livros! - exclamou. - E o senhor leu todos, senhor Bonnard?<br />
- Pobre de mim, li! - respondi. - E é por isso que nada sei, porque não há um único desses livros que não desminta o outro, de modo que, quando os conhecemos todos, não se sabe o que pensar. Estou nessa situação, senhora."<br />
<br />
ANATOLE FRANCE (Anatole François Thibault), "O crime de Sylvestre Bonnard" (<i>Le Crime de Sylvestre Bonnard</i>), França, 1881. Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-28389373303587168712019-01-03T14:34:00.001-02:002019-01-07T15:47:53.105-02:00O Homem de Marte"Ah! Ah! Que sorte! Que felicidade! Que alívio! Mas como pude duvidar do senhor? Um homem não seria inteligente se não acreditasse que os mundos são habitados. É preciso ser um tolo, um cretino, um idiota, um estúpido, para supor que os milhares de universos brilham e giram unicamente para divertir e maravilhar o homem, este inseto imbecil, para não compreender que a Terra é apenas uma poeira invisível na poeira dos mundos, que o nosso sistema não passa de algumas moléculas de vida sideral que morrerão em breve. Veja a Via Láctea, esse rio de estrelas, e pense que é apenas uma mancha na extensão que é o <i>infinito</i>. Pense nisso somente por dez minutos e compreenderá por que não sabemos nada, não deciframos nada, nem compreendemos nada. Só conhecemos um ponto, não sabemos nada para além dele, nada fora ele, nada de parte alguma, e acreditamos, e afirmamos. Ah! ah! ah! Se de repente nos fosse revelado esse grande segredo da vida extraterrestre, que assombro! Mas não... Mas não... sou um estúpido também, não o compreenderíamos, porque o nosso espírito só foi feito para compreender as coisas dessa Terra: ele não pode ir mais longe, é limitado, como a nossa vida, preso a esta pequena bola que nos transporta, e julga tudo por comparação. Veja, portanto, como todo mundo é tolo, limitado e convencido do poder da nossa inteligência que mal ultrapassa o instinto dos animais. Não temos nem mesmo a faculdade de perceber a nossa imperfeição, somos feitos para saber o preço da manteiga e do trigo e, no máximo, para discutir sobre o valor de dois cavalos, de dois barcos, de dois ministros ou de dois artistas.<br />
É tudo. Somos aptos apenas para cultivar a terra e nos servir desajeitadamente do que existe sobre ela. Mal começamos a construir máquinas que andam, ficamos admirados como crianças a cada descoberta que deveríamos ter feito há séculos, se fôssemos seres superiores. Ainda estamos cercados pelo desconhecido, mesmo neste momento em que foram necessários milhares de anos de vida inteligente para entrever a eletricidade. Somos da mesma opinião?"<br />
<br />
GUY DE MAUPASSANT, Henri-René-Albert, conto "O Homem de Marte" (<i>L'Homme de Mars</i>), França, publicado em 1889.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-75054590799581498562018-09-12T23:37:00.000-03:002018-09-12T23:41:12.004-03:00Os Ouvidos do Conde de Chesterfield e do Capelão Goudman"-Sempre observei que todos os negócios deste mundo dependem da opinião e da vontade de uma principal personagem, seja o rei, ou o primeiro-ministro, ou alto funcionário. Ora, essa opinião e essa vontade são o efeito imediato da maneira como os espíritos animais se filtram no cérebro e daí até a medula alongada; esses espíritos animais dependem da circulação do sangue; esse sangue depende da formação do quilo; esse quilo elabora-se na rede do mesentério; esse mesentério acha-se ligado ao intestino por filamentos muito delgados; esses intestinos, se assim me é permitido dizer, estão cheios de merda. Ora, apesar das três fontes túnicas de que cada intestino está revestido, é tudo perfurado como uma peneira; pois tudo na natureza é arejado, e não há grão de areia, por imperceptível que seja, que não tenha mais de quinhentos poros. Poder-se-ia fazer passar mil agulhas através de uma bala de canhão, se as conseguíssemos bastante finas e bastante fortes. Que acontece então a um homem com prisão de ventre? Os elementos mais tênues, mais delicados de sua merda se misturam ao quilo nas veias de Asellius, vão à veia-porta e ao reservatório de Pecquet; passam para a subclávia; penetram no coração do homem mais galante, da mulher mais faceira. É uma orvalhada de bosta que se lhe espalha por todo o corpo. Se esse orvalho inunda os parênquimas, os vasos e as glândulas de um atrabiliário, o seu mau humor transforma-se em ferocidade; o branco de seus olhos se torna de um sombrio ardente; seus lábios colam-se um ao outro; a cor do rosto assume tonalidades baças. Ele parece que vos ameaça; não vos aproximeis; e, se for um ministro de estado, guardai-vos de lhe apresentar um requerimento. Todo e qualquer papel, ele só o considera como um recurso de que bem desejaria lançar mão, segundo o antigo e abominável costume dos europeus. Informai-vos habilmente de seu criado se Sua Senhoria defecou pela manhã."<br />
<br />
VOLTAIRE, François-Marie Arouet, conto "Os Ouvidos do Conde de Chesterfield e do Capelão Goudman", publicado no livro <i>Escritos Avulsos Atribuídos a Diversos Homens Célebres</i>, 1775.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-66759882510652736082018-07-04T12:29:00.001-03:002018-07-04T12:29:25.220-03:00A Fugitiva"Enquanto isso, relia sua carta e, apesar de tudo, me sentia decepcionado com o pouco que uma carta contém de uma pessoa. Sem dúvida, as letras traçadas exprimem nosso pensamento, como também o fazem nossos traços fisionômicos: é sempre diante de um pensamento que nos encontramos. Mas, apesar de tudo, na pessoa, o pensamento só nos aparece depois de se haver difundido nessa corola do rosto desabrochado como um nenúfar. Isso, afinal de contas, o modifica muito. E, talvez, uma das causas de nossas perpétuas decepções em amor esteja nesses perpétuos desvios que fazem com que, à espera da pessoa ideal a quem amamos, cada encontro nos traga, em resposta, uma pessoa de carne em que já existe tão pouco do nosso sonho. Depois, quando reclamamos algo dessa pessoa, dela recebemos uma carta em que da pessoa mesma resta muito pouco, tal como, nas letras de álgebra, já não existe a determinação das cifras da aritmética, as quais, por sua vez, não encerram mais as propriedades das flores ou dos Frutos somados. E contudo, o amor, a criatura amada, suas cartas, são talvez, afinal de contas, traduções (por menos satisfatório que seja passar de uma a outra) da mesma realidade, pois essa carta que nos parece insuficiente quando a lemos, nós suamos frio enquanto ela não chegava, e basta para acalmar nossa angústia, quando não para saciar, com seus sinaizinhos negros, nosso desejo que sabe muito bem que ali só existe, apesar de tudo, a equivalência de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não realmente essas coisas."<br />
<br />
PROUST, Marcel, <i>A Fugitiva (Albertine Disparue)</i>, França, 1927.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-80154467781360791722017-12-28T12:35:00.000-02:002017-12-29T02:16:51.338-02:00À Sombra das Raparigas em Flor"Aqueles jovens Bergotte - o futuro escritor e seus irmãos e irmãs - não eram decerto superiores, antes pelo contrário, a outros jovens mais finos, mais espirituosos, que achavam os Bergotte muito barulhentos, até mesmo um pouco vulgares, irritantes com as suas brincadeiras características do 'gênero' metade pretensioso, metade simplório, da casa. Mas o gênio, e mesmo o grande talento, provém menos de elementos intelectuais e de afinamento social superiores aos alheios, que da faculdade de os transformar, de os transportar. Para aquecer um líquido com uma lâmpada elétrica, não se deve conseguir a lâmpada mais forte possível, mas uma cuja corrente possa deixar de iluminar, ser desviada e produzir, em vez de luz, calor. Para passear pelos ares, não é necessário ter o automóvel mais possante, mas um automóvel que, deixando de correr por terra e, cortando com uma vertical a linha que seguia, seja capaz de converter em força ascensional a sua velocidade horizontal. Assim, os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem no meio mais delicado, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflete, por mais medíocre que pudesse ser mundanamente e até, em certo sentido, intelectualmente falando, pois o gênio consiste no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido. No dia em que o jovem Bergotte pôde mostrar ao mundo de seus leitores o salão de mau gosto em que passara a infância e as conversas não muito divertidas que ali tivera com seus irmãos, nesse dia ele subiu mais alto que os amigos de sua família que eram mais espirituosos e mais distintos: estes, nos seus belos Rolls-Royce, poderiam voltar pra casa testemunhando certo desprezo pela vulgaridade dos Bergotte; mas ele, no seu modesto aparelho que afinal acabava de 'decolar', sobrevoava-os."<br />
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PROUST, Marcel, <i>À Sombra das Raparigas em Flor (À L'ombre Des Jeunes Filles en Fleur)</i>, França, 1919. Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-28302922306385142292016-12-31T15:36:00.001-02:002016-12-31T15:36:08.137-02:00O Jogo das Contas de Vidro"Permaneci uma hora ou hora e meia com o velho, eu não saberia transmitir-te o que se passou ou o que se comunicou entre nós, pois não pronunciamos palavra alguma. Senti apenas, depois que a minha resistência fora vencida, que ele me acolhia em sua paz e santidade e que uma serenidade maravilhosa e tranquila nos invadia, a ele e a mim. Sem que eu, consciente ou voluntariamente, procurasse meditar, tudo se comparava a uma meditação especialmente bem-sucedida e portadora de felicidade, cujo tema fosse a vida do Decano da Música. Eu o via, ou melhor, o sentia e a trajetória de sua evolução a partir daquele momento em que ele me encontrara, sendo eu um meninote, até o presente instante. Tinha sido uma vida de dedicação e trabalho, livre de compulsões e ambições, e cheia de música. E tudo se processou como se ele, tornando-se músico e Mestre de Música, tivesse escolhido a música como um dos caminhos à disposição do homem em busca de sua meta mais sublime, de sua liberdade interior, pureza e perfeição. Sua vida evoluiu, como se desde então ele nada mais tivesse a fazer senão deixar-se penetrar sempre mais intensamente pela música, transmutando-se e purificando-se. E assim impregnado pela harmonia musical, desde suas hábeis e inteligentes mãos de cimbalista, desde sua memória musical prodigiosa e potente até as últimas partes e órgãos do corpo e da alma, até na pulsação e na respiração, no sono e no sonho, ele agora era apenas um símbolo, verdadeiramente uma expressão, uma personificação da própria música. Pelo menos eu senti absolutamente como uma música aquilo que dele irradiava e que entre ele e mim oscilava como uma respiração ritmada. Era uma música totalmente imaterial, esotérica, que enfeitiçaria quem quer que caísse no seu encanto, do mesmo modo que uma peça polifônica aprisiona uma nova voz. Para quem não fosse músico a graça talvez se manifestasse em outras imagens, um astrônomo talvez se teria sentido como uma lua girando em torno de um planeta, um filósofo se teria sentido interpelado numa língua mágica e primitiva, que tudo pudesse significar. Por ora basta, já me despeço. Foi uma satisfação para mim, Carlo."<br />
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HESSE, Hermann, <i>O Jogo das Contas de Vidro (Dar Glasperlnspiel)</i>, Alemanha, 1943.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-60578378971515809232016-11-18T21:31:00.001-02:002016-11-21T10:24:52.176-02:00O Lobo da Estepe"Lembro-me, já nos últimos tempos de sua estada conosco, de um conceito dessa natureza, que nem chegou a ser mesmo um conceito, mas antes unicamente um olhar. Foi quando um célebre historiador e crítico de arte, de renome europeu, anunciou uma conferência na universidade local e logrei persuadir o Lobo da Estepe a que fosse assistir a ela, embora não me demonstrasse nenhum prazer em ir. Fomos juntos e nos sentamos um ao lado do outro no auditório. Quando o orador subiu à tribuna e começou a elocução, decepcionou, pela maneira presumida e frívola de seu aspecto, a muitos de seus ouvintes, que o haviam imaginado algo assim como a um profeta. E quando então começou a falar e, à guisa de introdução, endereçou aos ouvintes palavras lisonjeiras, agradecendo-lhes por terem comparecido em tão grande número, nesse exato momento o Lobo da Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista, oh!, um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e destruía a celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada; não, isso era o de menos. Havia naquele olhar um tanto mais de tristeza que de ironia; era na verdade um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual traduzia um desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só transverberava com sua desesperada claridade a pessoa do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a disposição do público e o título um tanto pretensioso da anunciada conferência - não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a vaidade, todo o jogo espiritual de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah!, lamentavelmente, o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e, sobretudo, do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: 'Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!' E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroavam de repente e não passavam de frívolos trejeitos!"<br />
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HESSE, Hermann, <i>O Lobo da Estepe</i> (<i>Der Steppenwolf</i>), Alemanha, 1927. Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-84191107405090171072016-06-23T20:25:00.001-03:002016-06-23T20:41:20.980-03:00Ecce Homo"Uma outra mostra de inteligência e autodefesa consiste em <b>reagir tão raramente quanto possível</b> e em evitar lugares e condições nas quais se estaria condenado a suspender de imediato sua 'liberdade', sua iniciativa, para se tornar um simples reagente. Eu tomo a relação com os livros como parâmetro comparativo. O erudito, que no fundo apenas se limita a 'moer' livros - o filólogo de atividade mediana, cerca de duzentos por dia - ao fim das contas acaba perdendo por completo a capacidade de pensar por si mesmo. Quando ele não mói, ele não é capaz de pensar. Ele <b>responde</b> a um estímulo (um pensamento lido) quando ele pensa... ao fim e ao cabo ele apenas reage. O erudito gasta toda sua força em dizer sim e não, na crítica do já pensado - ele mesmo não pensa mais... O instinto de autodefesa tornou-se frouxo nele; pois se assim não fosse ele iria se precaver contra os livros. O erudito - um <i>décadent</i>... Isso eu vi com meus próprios olhos: naturezas talentosas, de tendência livre e fértil, 'lidas à ruína' já aos trinta anos, simples palitos de fósforo, que têm de ser friccionados para soltar faíscas - soltar 'pensamentos'... Ler um <b>livro</b> de manhã bem cedo, ao nascer do dia, em todo o frescor, na aurora de suas forças - isso eu chamo de vicioso!..."<br />
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NIETZSCHE, Friedrich, <i>Ecce Homo - De Como a Gente Se Torna o Que É</i> (<i>Ecce Homo. Wie man wird, was man ist</i>), Alemanha, 1908.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-47719261566587305842016-05-15T10:04:00.001-03:002016-05-15T10:04:28.947-03:00História do Brazil<p dir="ltr">"O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no capítulo atrás dissemos, era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos: porém como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio, que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha nos desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha, com que tingem panos, que o daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, e sobre que ela foi edificada, e ficou tão firme e bem fundada, como sabemos, e porventura por isto ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado, e lhe chamaram estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que com não haver hoje 100 anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares, e sendo a terra tão grande, e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.</p>
<p dir="ltr">Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que haviam feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores de Guiné, por uma caravelinha que lá vai, e vem, como disse o Rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte de el-rei d. João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo se haviam os povoadores, os quais por mais arraigados, que na terra estivessem, e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal, e se as fazendas e bens que possuíam soubessem falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é papagaio real para Portugal; porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem, e a deixarem destruída.</p>
<p dir="ltr">Donde nasce também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas terras passou para a Corte, era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos / ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm / providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que hão de levar para o reino.</p>
<p dir="ltr">Estas são as razões porque alguns, como muitos dizem, que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado, e ter estabilidade e firmeza."</p>
<p dir="ltr">SALVADOR, Frei Vicente do (1564-1635). História do Brasil. Bahia, 1627. Livro Primeiro, Capítulo Segundo.<br>
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André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-66760043800721917252015-03-04T08:38:00.001-03:002015-03-04T12:45:08.750-03:00O Planeta do Sr. Sammler"- Parece um pouco maluco, mas, na realidade, trata-se de um negócio verdadeiramente bom. Pretendo, pessoalmente, participar da experiência, porque acho que tenho uma grande capacidade como vendedor. Posso dizer isso em meu favor e sem vergonha. Se a coisa der certo, cuidarei de organizá-la em em dimensões nacionais, com vendedores em todas as partes do país. Necessitaremos de especialistas regionais para o mapeamento. Os problemas serão diferentes em Portland, Oregon, em Miami Beach ou Austin, no Texas. 'É próprio do homem querer saber'. Isso é a primeira frase da <i>Metafísica</i> de Aristóteles. Nunca cheguei mais além, mas imagino que o resto deve ser um pouco antiquado, de qualquer maneira. Mas, já que querem saber, ficam deprimidos quando não conseguem citar os nomes dos arbustos que crescem nas suas propriedades. Sentem-se como seres fictícios, pois que os arbustos lhes pertencem. Estou convencido de que só o fato de conhecer o nome das coisas já anima essas pessoas. Procurei psicanalistas durante anos e o senhor acha que conseguiram curar-me de seja lá o que for? Nada disso, apenas colocaram etiquetas, deram nomes aos meus problemas, o que soa como conhecimento. Não deixa de ser um grande conforto e vale bem o dinheiro que se gasta. Você diz 'Eu sou um maníaco' ou ainda 'Eu sou um depressivo reativo'. Pode também dizer a respeito de um problema social 'Isso é colonialismo'. Aí, então, o mais estúpido cérebro parece transformado numa brasa, cujas fagulhas acabam por deixar você louco da vida. É maravilhoso. O sujeito pensa que se tornou um homem novo. Bem, o caminho para a riqueza e o poder é segurar-se firme nessas coisas."<br />
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BELLOW, Saul, 1915-2005. <i>O Planeta do Sr. Sammler (Mr. Sammler's Planet)<i></i></i>, EUA, 1970. Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-11137326704883265612014-10-27T14:44:00.000-02:002014-10-27T14:44:17.848-02:00Do Contrato Social"IV – Da democracia.<br />
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Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo.<br />
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Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção dos alvos gerais para a concentrar nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do governo constitui um mal menor que a corrupção por parte do legislador, continuação infalível dos alvos particulares. Então, alterado o Estado em sua substância, toda reforma se torna impossível. Um povo que jamais abusaria do governo, também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.<br />
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Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá. Contraria a ordem natural o grande número governar, e ser o pequeno governado. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negócios públicos; e é fácil de ver que não poderia ele estabelecer comissões para isso, sem mudar a forma da administração.<br />
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Creio, com efeito, poder assentar em princípio que, quando as funções governamentais são partilhadas entre diversos tribunais, os menos numerosos adquirem cedo ou tarde a maior autoridade, se por outro motivo não fosse, pela facilidade com que expedem os negócios, ali levados naturalmente.<br />
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Ademais, que de coisas difíceis de reunir não supõe tal governo? Primeiramente, um Estado bastante pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes, que antecipe a multidão de negócios e as discussões espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas classes e nas riquezas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade; enfim, pouco ou nenhum luxo; porque ou o luxo é o efeito das riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e afasta do Estado todos os cidadãos, submetendo-os uns aos outros, e todos à opinião.<br />
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Eis por que um célebre autor afirmou que a virtude é o princípio da República, pois todas essas condições não subsistiriam sem a virtude; mas, à falta de haver feito as distinções necessárias, faltou por vezes a este belo talento precisão, e inclusive clareza, pois não viu que, sendo a autoridade soberana em toda parte a mesma, o mesmo princípio deve nortear qualquer Estado bem constituído, mais ou menos, é certo, de acordo com a forma de governo.<br />
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Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão freqüente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da Polônia: <i>Malo periculosam libertatem quam quietum servitium.</i><br />
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Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos homens."<br />
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ROUSSEAU, Jean-Jacques; 1712-1778. <i>Do Contrato Social</i>. França, 1762.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-66829414219221534392014-10-13T10:13:00.002-03:002014-10-13T10:13:21.780-03:00A História de Portugal"Com a restauração das letras gregas e romanas, nos fins do seculo XV, o mundo antigo renasceu para uma vida em parte ficticia, em parte real. Ao passo que as tradições da jurisprudencia romana triumphavam emfim plenamente nas instituições politicas e civis das nações modernas, a republica ideal das letras organisava-se pelas condições de uma litteratura, cujos monumentos mais preciosos subsistiam ainda, mas cuja indole e espirito eram, até certo ponto, letra morta, porque não se podiam casar nem com os costumes, nem com as crenças da Europa moderna. O enthusiasmo pelos brilhantes vestigios de uma civilisação que passára, não tinha força para a fazer admirar e receber pelo commum dos homens, porque entre ella e o modo de existir destes havia insuperaveis antinomias. A idealidade christan, repellida do meio das classes illustradas, acolhia-se entre o vulgo; as formulas litterarias nascidas com a idade média, e que até ahi haviam acompanhado no seu desenvolvimento natural o progresso da nova sociedade, viam-se condemnadas pelo desdem da aristocracia da intelligencia. Á historia, como a tudo o mais, chegou um periodo de transformação. As antigas chronicas portuguesas, como as de todas as outras nações da Europa, seguiam um methodo e estylo de narrar totalmente diverso dos livros historicos dos romanos e gregos: eram mais singelas e pinturescas; representavam-nos melhor a vida domestica: os caractéres dos personagens eminentes não no-los faziam comprehender com os traços rapidos e profundos que bastavam aos historiadores romanos, e de que as paginas de Tacito são o mais perfeito modelo; mas em compensação legavam-nos ingenuamente os dictos e feitos desses individuos, e habilitavam assim a posteridade a concluir das scenas altamente dramaticas, que registavam, uma synthese talvez menos profunda, mas de certo não menos verdadeira. Mais inhabeis que os historiadores antigos em assignalarem a relação dos acontecimentos com as suas causas e effeitos, e a attribuir a cada successo a sua importancia politica; reduzindo, como elles, a historia a uma arte sem objecto fóra de si, em vez de a considerarem como sciencia social destinada a enriquecer o futuro com a experiencia do passado, sabiam todavia aproveitar melhor certos toques que tornam mais faceis de imaginar, permitta-se-nos a expressão, as linhas, contornos e cores das epochas. Se, emfim, as narrações dos chronistas eram por uma parte triviaes, e até baixas, pelo habito que elles tinham de particularisar circumstancias minimas, faziam-nos por outra parte perceber mais claramente a indole real dos individuos ou da geração de que tractavam, ao passo que os historiadores antigos só nos apresentam os homens com os gestos e meneios convencionaes e estudados do foro, do senado, do templo, da solemnidade publica. O chronista da idade média, para nos pôr diante dos olhos os grandes vultos que passaram na terra, alevanta dos tumulos os seus cadaveres, e infunde-lhes de novo a vida', ao passo que o escriptor grego ou romano apêa dos pedestaes as estatuas dos homens publicos, correctas, porém frias e mortas, e como a estatua no banquete de D. João Tenorio, fa-las caminhar ante nós com um gesto solemne, mas inflexivel e pesado."<br />
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HERCULANO, Alexandre; 1810-1877. A História de Portugal. Tomo I, 2a edição. Lisboa, 1846.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-54742182851534917322014-08-01T11:06:00.004-03:002014-08-01T11:07:19.108-03:00Batendo à porta do céu"Entre as muitas razões pelas quais escolhi entrar para a física estava o desejo de fazer alguma coisa que pudesse ter impacto permanente. Se eu iria investir tanto tempo, energia e comprometimento, queria que fosse em nome de algo com uma bandeira de longevidade e verdade. Como a maioria das pessoas, eu pensava sobre avanços científicos como ideias que resistiam ao teste do tempo. Minha amiga Anna Christina Büchmann estudou inglês na faculdade enquanto eu me formava em física. Ironicamente, ela estudou literatura pela mesma razão que me deixei levar pela matemática e pela ciência. Ela amava o modo como uma história inspirada se conservava por séculos. Quando, muitos anos depois, discutimos o romance Tom Jones, de Henry Fielding, descobri que a edição que eu tinha lido e apreciado tanto era aquela para a qual ela ajudara a produzir notas quando estava na pós-graduação. Tom Jones foi publicado 250 anos atrás, mas seus temas e sua sagacidade ressoam até hoje. Durante minha primeira visita ao Japão, li o muito mais antigo <i>Genji Monogatari</i> [Conto de Genji] e fiquei maravilhada com a atualidade de seus personagens também, apesar dos mil anos que se passaram desde que Murasaki Shikibu escreveu sobre eles. Homero criara a Odisseia cerca de 2 mil anos antes. E, a despeito de sua idade e de seu contexto tão diferentes, continuamos a saborear o conto da jornada de Odisseu e suas descrições atemporais sobre a natureza humana. Cientistas quase nunca leem textos científicos velhos — muito menos os antigos. Em geral, deixamos isso para historiadores e críticos literários. Não obstante, aplicamos o conhecimento que foi adquirido ao longo do tempo, tenha ele vindo de Newton no século XVII ou de Copérnico mais de cem anos antes. Podemos negligenciar os livros, mas temos cuidado em preservar as ideias importantes que eles podem conter."<br />
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RANDALL, LISA. <i>Batendo à porta do céu: O bóson de Higgs e como a física moderna ilumina o universo</i> / Lisa Randall ; tradução Rafael Garcia. - 1. ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2013.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-6661508239410091532014-04-06T11:57:00.000-03:002014-04-06T11:58:13.681-03:00Sexus"A verdade é que a arte é um luxo hoje. Eu poderia continuar vivendo sem nunca ler um livro ou olhar um quadro. Temos uma quantidade de outras coisas, não precisamos de livros e de quadros. A música sim, teremos sempre necessidade de música. Não necessariamente da boa música, mas da música. De qualquer forma, ninguém compõe mais boa música... A meu ver, o mundo caminha para a ruína. Não é preciso muita inteligência para ir vivendo, do modo que as coisas andam. Na verdade, quanto menos inteligência se tem, mais se progride. Arranjamos tudo de tal maneira que as coisas nos são trazidas numa bandeja. Tudo o que se precisa é saber fazer uma coisinha qualquer mais ou menos bem; entra-se para um sindicato, trabalha-se o menos possível, e ganha-se uma boa aposentadoria quando chegar a idade. Se o sujeito tivesse inclinações estéticas, não seria capaz de enfrentar a rotina estúpida, ano após ano. A arte nos faz inquietos, insatisfeitos."<br />
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MILLER, Henry (1891 - 1980), <i>Sexus</i>, EUA, 1949.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-86431258529350914032013-12-20T17:47:00.000-02:002013-12-20T18:12:02.884-02:00Pálido Ponto Azul"Se você vivesse há dois ou três milênios, não seria vergonhoso afirmar que o Universo foi feito para nós. Era uma tese atraente, conciliável com tudo o que conhecíamos; era o que os mais cultos dentre nós ensinavam sem ressalvas. Mais descobrimos muitas coisas desde então. Defender essa posição hoje em dia significa desconsiderar propositadamente a evidência e fugir do autoconhecimento.Para muitos de nós, essas desprovincianizações ainda são motivo de exasperação. Mesmo que seu triunfo não seja completo, elas minam a confiança – ao contrário das felizes certezas antropocêntricas, impregnadas de utilidade social, dos tempos anteriores. Desejamos estar na Terra para alguma finalidade, mesmo que nenhuma seja evidente apesar de todos os nosso auto-enganos. “<i>O absurdo da vida</i>”, escreveu Leon Tolstoi, “<i>é o único conhecimento incontestável a que o homem tem acesso.</i>” O nosso tempo está oprimido sob o peso cumulativo dos sucessivos desmascaramentos de nossas presunções: somos os retardatários. Vivemos na aldeia cósmica. Derivamos de micróbios e estrume. Os macacos são nossos primos. Nossos pensamentos e sentimentos não estão plenamente sob nosso controle. É possível que existam muitos seres mais inteligentes e muito diferentes em outros lugares. E, além do mais, estamos estragando o nosso planeta e nos tornando um perigo para nós mesmos. O alçapão sob nossos pés se abre de repente. Descobrimo-nos numa queda livre sem fim. Estamos perdidos numa grande escuridão e não há quem envie um grupo de busca. Diante da realidade tão dura, é claro que nos sentimos tentados a fechar os olhos e fingir que estamos seguros e abrigados em casa, que a queda não passa de um pesadelo. Falta-nos um consenso sobre nosso lugar no Universo. Não existe nenhuma visão do longo prazo sobre o objetivo de nossa espécie que tenha aprovação geral; a não ser, talvez, a da simples sobrevivência. Sobretudo quando os tempos estão difíceis, procuramos desesperadamente encorajamento, sem querer escutar a litania das grandes humilhações e das esperanças destroçadas, muito mais dispostos a ouvir que somos especiais, mesmo que as evidências sejam tão frágeis. Se precisamos de um pouco de mito e ritual pra atravessar uma noite que parece sem fim, quem dentre nós não simpatiza e compreende? Se nosso objetivo, porém, não é uma segurança superficial, mas conhecimento profundo, os ganhos dessa nova perspectiva sobrepujam em muitas perdas. Quando dominamos o medo de ser minúsculos, vemo-nos no limiar de um Universo vasto e terrível que eclipsa totalmente – em tempo, em espaço e em potencial – o bem arrumado proscênio antropocêntrico de nossos antepassados. O nosso olhar atravessa o espaço de bilhões de anos-luz para contemplar o Universo pouco depois do Big Bang, e sondamos a estrutura sutil da matéria. Examinamos o âmago de nosso planeta e o interior em chamas de nossa estrela. Deciframos a linguagem genética em que estão escritas as diversas habilidades e inclinações de cada ser sobre a Terra. Revelamos capítulos ocultos no registro de nossas próprias origens e, com alguma dose de angústia, compreendemos melhor nossa natureza e nossas perspectivas. Inventamos e aprimoramos a agricultura, sem o que quase todos morreríamos de fome. Criamos medicamentos e vacinas que salvam a vida de bilhões. Comunicamo-nos à velocidade da luz e damos a volta ao redor da Terra em uma hora e meia. Enviamos dúzias de naves a mais de setenta mundos e quatro sondas às estrelas. Temos razão de nos alegrar com nossas realizações, de sentir orgulho pelo fato de nossa espécie ter sido capaz de enxergar tão longe e de julgar nosso mérito seguindo em parte essa mesma ciência que tem de tal forma esvaziado as nossas pretensões."<br />
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SAGAN, Carl, 1934-1996. <i>Pálido Ponto Azul</i>. Estados Unidos, 1994.André O.http://www.blogger.com/profile/18332664488282757380noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-17057010100450627042013-02-07T17:38:00.000-02:002013-03-21T19:44:25.930-03:00As Ilhas da Corrente"Tudo o que você tem agora é um problema básico e seus problemas intermediários. É só o que você tem, portanto trate de se contentar com isso. Você nunca mais terá sonhos bons, de modo que seria melhor não dormir. Apenas descanse e use a cabeça, até que ela não funcione mais, e quando pegar no sono, espere sofrer horrores. Os horrores que você ganhou naquela grande partida de dados que eles jogam. Você atirou os dados, fez os pontos, aguardou o resultado e finalmente recolheu o prêmio do sono difícil e desagradável. Porra, só faltou recolher a insônia absoluta. Mas você trocou isso pelo que você tem, então trate de se conformar. Agora você está sonolento. Durma, pois, e prepare-se para acordar suado. E que tem isso? Não tem nada, ora. Mas lembra quando você antes dormia a noite inteira com a mulher, sempre feliz, e nunca acordava, a não ser que ela o despertasse para fazerem amor? Lembre, Thomas Hudson, e veja que espécie de bem isso pode lhe trazer."<br />
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HEMINGWAY, Ernest, 1898-1961. <i>As Ilhas da Corrente </i>(<i>Islands in the Stream</i>), Estados Unidos, 1970.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-31887973370685266982012-07-12T01:37:00.001-03:002013-03-21T19:46:09.612-03:00Diário de um Velho Louco"Creio que o fenômeno seja comum à maioria dos idosos, mas a verdade é que, nos últimos tempos, nenhum dia se passa sem que eu não pense em minha própria morte. Não só nos últimos tempos, porém, no meu caso. Eu pensava nisso desde muito antes, desde a época em que eu tinha os meus vinte anos, mas a recorrência do pensamento é tão grande, atualmente, que impressiona. 'Pode ser que eu morra hoje', imagino cerca de duas ou três vezes ao dia. A ideia não vem necessariamente acompanhada de medo. Na minha juventude, vinha associada a uma intensa sensação de pavor. Agora, porém, chega a me proporcionar certo prazer. Em compensação, fico imaginando pormenorizadamente as cenas que se seguirão à minha morte. O velório, por exemplo, não será realizado no cemitério Aoyama: o caixão deverá ser depositado naquele aposento de dez <i>tatami</i> voltado para o jardim. O arranjo provar-se-á prático, pois as pessoas poderão entrar pela porta dos fundos, passar pela casinha de chá e pelo portãozinho que se abre para ela e, pisando as lajes que formam uma trilha no jardim, alcançando o aposento e ali queimar incensos. Que não me toquem as estridentes flautas e flajolés do cerimonial xintoísta". <br />
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TANIZAKI, Junichiro, 1886-1965. <i>Diário de um Velho Louco</i> (<i>Futen Rijin Nikki</i>), Japão, 1962.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-3366631291722174015.post-36838107266320897342012-06-14T15:40:00.002-03:002013-03-21T19:51:13.606-03:00Naomi"Mas essa é a questão. Não conseguia entender por que Antônio se apaixonara por uma mulher tão sem coração. E não era apenas Antônio; antes dele, o grande Júlio César se arruinara envolvendo-se com Cleópatra. Há muitos outros exemplos. Quando se examina as grandes brigas de família do período Tokugawa, ou a ascensão e queda dos estados, sempre se encontra, sempre, as manhas de uma terrível sedutora, por trás de tudo. Ora, será que essas manhas são articuladas de maneira tão engenhosa, tão astuta, que qualquer um se deixaria levar por elas? Acho que não. Por mais ardilosa que fosse Cleópatra, é pouco provável que seus expedientes fossem mais férteis que os de César ou Antônio. Quando um homem está alerta, não precisa ser um herói para perceber se uma mulher é sincera e se está dizendo a verdade. Um homem que se deixa iludir, mesmo quando sabe que está destruindo a si mesmo, é apenas demasiado pusilânime. Se este foi, realmente, o caso de Antônio, então não há nada tão maravilhoso nos heróis... Esses eram meus pensamentos secretos, na ocasião, e aceitei o julgamento do meu professor, de que Marco Antônio era 'o alvo de riso dos séculos', 'o maior tolo da história'." <br />
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TANIZAKI, Junichiro, 1886-1965. <i>Naomi</i> (<i>Chinjin no Ai</i>), Japão, 1924.Buryhttp://www.blogger.com/profile/17907715466069455084noreply@blogger.com