5 de abril de 2023

Regresso Ao Lar

“Regressei, atravessei o salão e olho em volta. É a velha granja de meu pai. O charco no meio. Objetos velhos e imprestáveis misturados impedem a passagem para a escada do celeiro. O gato espreita da varanda. Um trapo esfarrapado, preso, certa vez, a uma barra, enquanto alguém brincava, agita-se ao vento. Cheguei. Quem haverá de me receber? Quem espera atrás da porta da cozinha? A chaminé fumega, estão preparando o café para a ceia. Sentes a intimidade, encontras-te como em tua casa? Não o sei, não estou certo. É a casa de meu pai, mas todos estão um junto ao outro, friamente, como se estivessem ocupados com seus próprios assuntos, que em parte esqueci e em parte não conheci jamais. De que posso lhes servir, que sou para eles, mesmo sendo o filho do pai, o filho do velho proprietário rural? E não me atrevo a chamar da porta da cozinha, e apenas escuto de longe, apenas de longe escuto, tenso sobre os meus pés, mas de maneira tal que não pudesse ser surpreendido a escutar.E porque escuto de longe, não percebo nada, salvo uma leve pancada de relógio, que ouço ou que talvez apenas creio ouvir, chegando-me desde os dias da infância. O mais que acontece na cozinha é segredo dos que ali estão sentados e que me ocultam. Quanto mais se hesita diante da porta, mais estranho alguém se sente. Que tal se agora alguém a abrisse e me fizesse uma pergunta? Porventura, eu mesmo não estaria, então, como alguém que deseja esconder o seu segredo?"

KAFKA, Franz, 1883-1924, conto “Regresso Ao Lar” (“Heimkehr”) provavelmente escrito entre novembro de 1923 e janeiro de 1924, tradução brasileira de 1968 publicada na coletânea A Muralha da China do Clube do Livro.