17 de agosto de 2007

Versos íntimos

"Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo amigo é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!"

ANJOS, Augusto dos. 1884-1914. Eu. Rio de Janeiro: 1912.

14 de agosto de 2007

O morro dos ventos uivantes

"Gozava eu de um mês de bom tempo à beira-mar, quando travei relações com a mais fascinante das criaturas, para mim uma verdadeira deusa, tanto que nem conhecimento tomou de minha pessoa. "Nunca lhe confessei meu amor" de viva-voz. Mas se os olhos falam, o mais simplório dos imbecis poderia verificar que eu estava completamente louco de amor. Ela por fim compreendeu e por sua vez me lançou um olhar... o mais doce de todos os olhares imagináveis. Que fiz eu? Confesso-o para vergonha minha... encolhi-me friamente na minha timidez, como um caracol. A cada olhar, recolhia-me mais frio e mais distante, até que afinal a pobrezinha começou a duvidar de seus próprios sentidos, e, acabrunhada de confusão pelo seu suposto engano, persuadiu sua mamãe a mudar de pouso. Por causa deste curioso feitio meu, criei reputação de crueldade intencional, aliás, bem injusta, como só eu mesmo posso julgar."

BRONTË, Emily. 1818-1848. O morro dos ventos uivantes / Emily Brontë; tradução de Oscar Mendes. - São Paulo: Abril Cultural, 1979.

13 de agosto de 2007

Matadouro 5

"Billy voltou a não responder, ali na trincheira, já que não queria que a conversa prosseguisse por um instante a mais do que o necessário. Sentiu-se vagamente tentado a dizer, porém, que sabia uma coisa ou outra a respeito de feridas. Afinal, Billy havia observado torturas e ferimentos terríveis no começo e no final de quase todos os dias de sua infância. Pendurado na parede de seu pequeno quarto em Ilium havia um crucifixo absolutamente macabro. Um cirurgião militar teria se admirado com a fidelidade clínica da interpretação do artista das feridas de Cristo - as feridas da lança, dos espinhos, os buracos feitos pelos cravos de ferro. O Cristo de Billy havia morrido de forma tenebrosa. Era de dar pena. Coisas da vida."

VONNEGUT JR., Kurt. 1922-2007. Matadouro 5 / Kurt Vonnegut Jr.; tradução de Cássia Zanon. - Porto Alegre: L&PM, 2005.

10 de agosto de 2007

A conquista do pão

"Todas as coisas do mundo são de todos os homens, porque todos os homens delas necessitam, porque todos os homens colaboraram, na medida de suas forças, para produzí-las; porque não é possível avaliar a parte de cada um na produção das riquezas do mundo."

KROPOTKIN, Pyotr. 1842-1921. A conquista do pão. Paris: 1892.

9 de agosto de 2007

O diário de Nina

"Nos últimos tempos tornei-me indiferente, quase chegando ao ridículo, em relação a tudo o que me circunda. Acontece-me sentir vontade de vagar por um infinito campo nevado, de me perder entre os leves flocos de neve e de passear friundo a natureza. Mas não tenho tempo. Ultimamente, até parei de ter esperança no futuro. Não espero nada, não penso nada. Somente, às vezes, devaneio. É uma sensação muito particular: transporto-me para um mundo inteiramente diverso, no futuro, naturalmente, mas sem esperança. Simplesmente como se eu começasse a ler um livro. Antes, quando era menor, eu chamava isso de jogo, mas agora já não o chamo de coisa alguma."

LUGOVSKAIA, Nina. 1918-1993. O diário de Nina / Nina Lugovskaia; tradução de Joana Angélica d'Avila Melo, a partir da versão italiana de Elena Dundovich, com curadoria e posfácio de Elena Kostioukovitch. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

8 de agosto de 2007

Sobre a erudição e os eruditos

"Em geral, estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade têm em mira apenas a informação, não a instrução. Sua honra é baseada no fato de terem informações sobre tudo, sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e o conjunto de todos os livros. Não ocorre a eles que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma, no entanto é essa maneira de pensar que caracteriza uma cabeça filosófica. Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto! Até mesmo quando se relata, a respeito de Plínio, o Velho, que ele lia sem parar ou mandava que lessem para ele, seja à mesa, em viagens ou no banheiro, sinto a necessidade de me perguntar se o homem tinha tanta falta de pensamentos próprios que era preciso um afluxo contínuo de pensamentos alheios, como é preciso dar a quem sofre de tuberculose um caldo para manter sua vida. E nem a sua credulidade sem critérios, nem o seu estilo de coletânea, extremamente repugnante, difícil de entender e sem desenvolvimento contribuem para me dar um alto conceito do pensamento próprio desse escritor."

SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. 1851.

SCHOPENHAUER, Arthur. 1788-1860. A arte de escrever / Arthur Schopenhauer; tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind. - Porto Alegre: L&PM, 2006.

7 de agosto de 2007

Clube da luta

"O que Tyler está planejando? O mecânico começa a falar, mas é puro Tyler Durden.
— Vejo os homens mais fortes e mais inteligentes que jamais existiram — diz ele, o rosto delineado pelas estrelas na janela do motorista — homens que estão bombeando gasolina nas salas de espera.
A inclinação da testa, as sobrancelhas, a linha do nariz, os cílios, a curva dos olhos, o contorno plástico da boca, o jeito de falar, tudo é delineado pelas estrelas.
— Se pudéssemos colocar esses homens num campo de treinamento e terminar de educá-los.
— O que a arma faz é direcionar a explosão.
— Você tem uma classe de mulheres e homens, jovens e fortes, que estão dispostos a dar a vida por alguma coisa. A publicidade persegue essa gente com carros e roupas desnecessárias. Gerações que vêm trabalhando em empregos que odeiam, comprando o que não tem a menor necessidade.
— Nossa geração não viveu uma grande guerra ou uma grande depressão, mas nós sim. Nós vivemos uma grande guerra espiritual, uma grande revolução contra a cultura. Nossa grande depressão é a nossa vida. Nossa depressão é espiritual.
— Temos de mostrar a esses homens e mulheres o que é a liberdade, escravizando-os; mostrar o que é a coragem, amedrontando-os."

PALAHNIUK, Chuck. Clube da luta. New York, USA: 1996.

6 de agosto de 2007

Tempo de roubar

"Amealhei tudo aquilo que se ganha com o povo, ao qual nada tirei a não ser a sabedoria. Fiz meu jogo. Sujo, limpo? Não experimente, Don Ramón, espreitar alguma vez o jogo dos virtuosos. Lidei com gente de todas as classes, de todos os setores, dos meios interditos a certos indivíduos. Fiz parte dessas camadas, dessas esferas onde até hoje se é monarca e amanhã se é bobo. Respirei sempre bem em qualquer altitude ou profundidade, pois sempre soubera apetrechar-se de pulmões e de guelras. Fui mais considerado onde mais tirava e mais esquecido nos pontos em que dava férias à minha arte. É preciso contar que, num mundo torto e achatado, nada se ganha em andar, parvamente, direitinho. Ninguém dá valor ao valor. Ninguém dá razão ao que falha, ao que soçobra. Ninguém dá razão ao pigmeu que foi justo. Mas todos levam aos ombros o gigante que foi bruto. Quando o meu isqueiro não acendia, eu usava fósforos, mas para as falhas dos homens tinha meu cão. Conhecia melhor os homens falando com ele. O silêncio dos cães enche uma casa e demonstra a inutilidade das frases que se ladram sem nexo."

FERNANDO, Santos. 1927-1975. Tempo de roubar. Lisboa: 1964.