20 de novembro de 2010

On The Road

"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser um negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, música, não era noite o suficiente. Parei num pequeno quiosque onde um homem vendia chili apimentado em embalagens de papel; comprei alguns e comi percorrendo ruas escuras e misteriosas. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa menos aquilo que eu tão aterradoramente era, um 'branco' desiludido. Durante toda minha vida vida, tivera ambições de branco: fora por isso que abandonei uma boa mulher como Terry no vale de San Joaquin. Passei pelos portais escuros das casas dos mexicanos e dos negros; por ali ecoavam vozes amenas e, ocasionalmente, podia-se vislumbrar até o joelho moreno de alguma garota enigmática e sensual, ou rostos sombrios de homens por trás das roseiras. Criancinhas sentavam-se como sábios em antigas cadeiras de balanço. Um grupo de negras foi se aproximando e uma das mais jovens destacou-se das anciãs de aspecto maternal e dirigiu-se rapidamente a mim - 'Alô, Joe' - e de repente viu que eu não era o Joe, e recuou, enrubescendo. Desejei ser Joe. Mas era apenas eu, Sal Paradise, melancólico, errando nessa escuridão violeta, naquela noite insuportavelmente encantadora, desejando poder trocar meu mundo pelo dos alegres, autênticos e extasiantes negros da América. Aquela periferia caindo aos pedaços me fez lembrar Dean e Marylou, que desde a infância conheciam tão bem aquelas ruas. Como gostaria de poder encontrá-los."

KEROUAC, Jack. 1922-1969. On The Road (Pé Na Estrada) / Jack Kerouac: tradução, introdução e posfácio de Eduardo Bueno. - Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 223-224.

13 de outubro de 2010

Os Frutos da Terra

"...Com dezoito anos, terminados meus primeiros estudos, o espírito cansado de trabalho, o coração desocupado, definhado por isso, o corpo exasperado pelos constrangimentos, parti pelas estradas, sem meta, ao sabor de minha febre erradia. Conheci tudo o que sabeis: a primavera, o odor da terra, a floração das ervas nos campos, as brumas das manhãs sobre os rios, e o vapor da tarde nos prados. Atravessei cidades, e não quis parar em nenhum lugar. Feliz, pensava, quem não se prende a nada na terra e passeia um eterno fervor através das constantes mobilidades. Odiava os lares, as famílias, todos os lugares em que o homem pensa encontrar descanso; e as afeições contínuas, e as fidelidades amorosas, e o apego às idéias - tudo o que compromete a justiça; dizia que cada novidade deve encontrar-nos sempre diponíveis."

GIDE, André, 1869-1951. Os Frutos da Terra (Les Nourritures Terrestres), França, 1897.

2 de outubro de 2010

Os Moedeiros Falsos

"- O egoísmo também não. E é isso o que não sabe... Queriam nos fazer acreditar que não existe para o homem outra fuga do egoísmo além de um altruísmo ainda mais horrível! Quanto a mim, considero que, se há algo mais desprezível do que o homem, e mais abjeto, são muitos homens. Nenhum raciocínio poderia convencer-me de que a soma de unidades sórdidas possa dar um total delicado. Não entro num bonde ou num trem sem desejar um belo acidente que reduza a farinha todo aquele lixo vivo. Oh! Eu inclusive, é claro. Nem numa sala de espetáculos sem desejar a queda do lustre ou o estouro de uma bomba, e, como eu deveria explodir junto, de boa vontade a levaria debaixo do paletó, se não me reservasse coisa melhor. Dizia?..."

GIDE, André, 1869-1951. Os Moedeiros Falsos (Les Faux-Monnayeurs), França, 1925.

14 de setembro de 2010

O Renegado

"-Em muitas coisas -disse ela. - Admirando essas flores, que parecem feitas para nós, eu perguntava para mim mesma para quem nós somos feitos, nós; quais são os seres que nos interessam. Vós sois meu pai, posso dizer-vos o que em mim se passa; vós sois hábil, posso explicar-vos tudo. Sinto em mim como que uma força que necessita exercer-se, luto contra qualquer coisa. Quando o tempo está cinzento, estou meio contente, sinto-me triste, mas tranqüila. Quando está bonito, quando as flores cheiram bem, quando estou além, sentada no meu banco sob as madressilvas e os jasmins, elevam-se em mim vagas a quebrar-se contra minha imobilidade. Vêm-me ao espírito idéias, que me ferem e somem semelhante aos pássaros que, à tarde, passam pelas nossas janelas e não consigo retê-las. Quando faço um ramalhete em que as cores são bem combinadas como num bordado, em que o vermelho morde o branco, em que o verde e o marrom se cruzam, quando tudo nele se confunde, que o ar brinca entre essas flores, misturam-se os perfumes dos cálices, sinto-me feliz, reconhecendo o que em mim se passa. Quando, na igreja, o órgão toca e os meninos respondem, dois cantos distintos falam; as vozes humanas e a música. Nesse instante, sinto-me contente, pois essa harmonia ecoa no meu coração, rezo com um prazer que me anima o sangue..."

BALZAC, Honoré de, 1799-1850. O Renegado (L'Enfant Maudit), França, publicado em dez partes de 1831 a 1836, e, pela primeira vez em um único volume, a 1837.

5 de agosto de 2010

A Mulher de Trinta Anos

"Entregue a si mesma, a marquesa pôde, pois, permanecer perfeitamente silenciosa em meio ao silêncio que estabelecera em volta de si, e não teve ocasião para sair do quarto forrado de tapeçarias onde falecera sua avó, e onde se recolhera para morrer suavemente, sem testemunhas, sem importunações, sem sofrer as falsas demonstrações dos egoísmos mascarados de afeição que, nas cidades, causam aos moribundos uma dupla agonia. Essa mulher tinha vinte e seis anos. Nessa idade, uma alma ainda cheia de ilusões poéticas encontra prazer em saborear a morte, quando ela se afigura benfazeja. Mas a morte é uma sedutora falaz das pessoas jovens; aproxima-se e recua, mostra-se e esconde-se; a demora desilude-as dela, a incerteza que lhes causa o amanhã termina por lançá-las de novo no mundo, onde tornarão a encontrar a dor que, mais impiedosa que a morte, há de feri-las sem fazer esperar. Ora, essa mulher que se recusava a viver ia sentir a amargura dessa demora no fundo de sua solidão, e nesta fazer, numa agonia moral que a morte não terminaria, uma terrível aprendizagem de egoísmo que devia corromper-lhe o coração e amoldá-lo à sociedade."

BALZAC, Honoré de, 1799-1850. A Mulher de Trinta Anos (La Femme de Trente Ans), França, 1834.

5 de julho de 2010

O Jovem Törless

"Pois os pensamentos são uma coisa estranha. Muitas vezes não passam de acasos que desaparecem sem deixar rastros; os pensamentos tem épocas de viver e épocas de morrer. Pode-se ter uma idéia genial, e ainda assim, como uma flor, ela murchará lentamente entre nossas mãos. Permanece uma forma, mas faltam suas cores e seu aroma. Isso significa que, embora posteriormente nos lembremos bem dessa idéia, palavra por palavra, e o valor lógico da frase permaneça inalterado, ela apenas flutua desorientada na superfície de nosso interior, e não mais nos sentimos enriquecidos por possui-la. Até que - talvez anos depois - de súbito surge o momento em que vemos que, naquele meio-tempo, nada sabíamos sobre ela, ainda que, do ponto de vista da lógica, soubéssemos tudo."

MUSIL, Robert, 1880-1942. O Jovem Törless (Die Verwirrungen Des Zöglings Törless), Áustria, 1906.

13 de junho de 2010

A violência como busca de identidade

"Sim, todas as formas de violência são buscas de identidade. Quando você vive na fronteira, não tem identidade. Não é alguém. Por isso, as pessoas se tornam muito rudes. Têm de provar que são alguém e tornam-se violentas. Portanto, a identidade é sempre acompanhada de violência. Isso lhe parece parodoxal? Em geral, sentimos necessidade de violência quando perdemos a nossa identidade. Assim, é apenas a ameaça à identidade das pessoas que as torna violentas. Terroristas e seqüestradores são pessoas sem identidade. Mas querem tê-la de qualquer jeito, querem divulgação, querem aparecer no noticiário."

McLUHAN, Marshall. 1911-1980. McLuhan por McLuhan: conferências e entrevistas / Marshal McLuhan; tradução de Antônio de Pádua Danesi; organizado por Stephanie McLuhan e David Staines; introdução de Tom Wolfe. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 315.

28 de maio de 2010

Kid Foguete no Matadouro

"um dos negros saltou para dentro do caminhão atrás de mim e outro começou a me atirar as pernas de porco, que eu pegava e jogava para o cara parado às minhas costas, que se virava e lançava para a parte traseira do caminhão. as pernas vinham RÁPIDAS, eram pesadas e foram ficando cada vez mais. mal pegava uma e já me virava, e já vinha outra a caminho, pelo ar. sabia que estavam dispostos a liquidar com o meu couro. não demorou muito comecei a suar, a suar, feito água jorrando de torneira aberta com toda a força, e a sentir dores nas costas, nos pulsos, nos braços. me doía tudo, e os joelhos, no limite da resistência possível, já baqueavam de tanto tentar manter o equilíbrio. nem conseguia enxergar direito, fazendo um esforço tremendo para apanhar mais uma perna e atirar, mais uma perna e atirar. todo salpicado de sangue e aparando com as mãos aquele PLOFT macio, morto e pesado, a carne cedendo feito nádegas de mulher ao contato dos dedos, e eu fraco demais para poder abrir a boca e reclamar, ei caras, que bicho mordeu vocês, PORRA? as pernas de porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e mais carrinhos, cheios de pernas e mais pernas de porco, até que afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas. uma verdadeira noite no inferno. ué, porque estou me queixando? sempre gostei de trabalho noturno."

BUKOWSKI, Charles, 1920-1994. Crônica de Um Amor Louco, Ereções, Ejaculações e Exibicionismos Parte 1 - Conto "Kid Foguete no Matadouro" (Erections, Ejaculations, Exhibitions and General Tales of Ordinary Madness), EUA, 1967-1972.

27 de abril de 2010

Um Mês Só de Domingos

"Estamos despidos, diz Paulo, se Cristo não ressurgir - 'se não há ressurreição dos mortos'. No entanto, como é pesado, como era pesado então e mais pesado hoje, reerguer os mortos em nossos corações! Como jazem, feito pedras e azuis, nos carrinhos dos hospitais! Como é irreversível o progresso da morte traçado pelas radiografias e biópsias! E, quanto aos vivos, como é aceitável a morte dos mortos, com que rapidez se sela o lugar em que estiveram eles, como somos astuciosamente gratos pelo espaçozinho extra que eles nos dão! Nós os detestaríamos se fossem voltar. Um de nossos medos mais profundos, na verdade, é que os mortos realmente voltem; a ressureição dos mortos é uma história de terror. Em criança, vou confessar, eu ficava apavorado de rezar bem demais e que das trevas Jesus me respondesse entrando pela porta do meu quarto, e que pedisse de mim o meu brinquedo predileto."

UPDIKE, John, 1932-2009. Um Mês Só de Domingos (A Month of Sundays), EUA, 1975.

27 de março de 2010

O Retrato de Dorian Gray

"Mas, era comum, tanto quanto na própria estirpe, ter ancestrais na literatura, talvez mais próximos em tipo e temperamento, muitos, e, com certeza, de uma influência de que podemos ter consciência mais absoluta. Houve vezes em que pareceu, a Dorian Gray, que o todo da história era um simples registro de sua própria vida, não como a vivera em ato e circunstância, mas como a criara na imaginação, como se lhe desenrolara no cérebro, nas paixões. Sentia que as conhecia todas, aquelas figuras terríveis, singulares, que atravessaram o palco do mundo e fizeram do pecado algo tão maravilhoso e do mal, algo tão cheio de sutileza. A ele parecia que, de um modo algo misterioso, aquelas vidas foram sua própria vida."

WILDE, Oscar. 1854-1900. O Retrato de Dorian Gray. Irlanda, 1890.

WILDE, Oscar. 1854-1900. O Retrato de Dorian Gray (Clássicos Abril Coleções; v. 4) / Oscar Wilde; tradução de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. São Paulo: Editora Abril, 2010, p. 186.

11 de março de 2010

O Som e a Fúria

"Quando a sombra do caixilho apareceu nas cortinas era entre sete e oito horas e então eu já estava no tempo outra vez, ouvindo o relógio. Ele era do Avô, e quando o Pai o deu para mim disse: Quentin, eu lhe dou o mausoléu de toda a esperança e todo o desejo; é mais do que penosamente possível que você irá usá-lo para adquirir o reducto absurdum de toda experiência humana, mas não satisfará as suas necessidades individuais, como não satisfez as dele ou as de seu pai. Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que o possa esquecer por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque nenhuma batalha se vence ele disse. Elas não são nem ao menos disputadas. O campo de batalha revela ao homem somente a sua loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão dos filósofos e doidos."

FAULKNER, William, 1897-1962. O Som e a Fúria (The Sound and the Fury), EUA, 1929.

17 de fevereiro de 2010

Viagens de Gulliver

"Eu disse existir entre nós uma sociedade de homens educados desde a juventude na arte de provar, por meio de palavras multiplicadas para esse fim, que o branco é preto, e que o preto é branco, segundo eram pagos para dizer uma coisa ou outra. Todo o resto do povo é escravo dessa sociedade. Por exemplo, se meu vizinho tenciona em ficar com minha vaca, contrata um advogado para provar que deve tirar-me a vaca. Nesse caso, tenho de contratar outro advogado para defender meus direitos, pois é contrário a todas as normas da lei permitir-se a um homem falar em seu próprio nome. Pois bem, nessas condições, eu, que sou o verdadeiro dono, me vejo a braço com duas grandes desvantagens: a primeira, meu advogado, habituado quase desde o berço a defender a falsidade, está completamente fora do seu elemento quando precisa advogar a justiça, ofício desnatural, em que sempre se empenha com grande inépcia, senão com má vontade. A segunda desvantagem reside em que meu advogado tem de proceder com muita cautela, para que o não censurem e aborreçam os colegas, como a alguém que degradasse o exercício da profissão."

SWIFT, Jonathan, 1667-1745. Viagens de Gulliver (Gulliver's Travels), Inglaterra, 1726.

26 de janeiro de 2010

Cores Proibidas

"A existência da obra artística contém em si uma duplicidade. Essa era sua opinião. Da mesma maneira que uma velha semente de lótus desenterrada pode voltar a dar flores, as obras artísticas de vida eterna ressucitam no coração de todas as épocas e países. Ao entrarmos em contato com uma obra antiga, nossa vida torna-se prisioneira do espaço e do tempo contidos na obra e descarta o resto da vida presente. Vivemos então uma segunda vida, cujo tempo interior já está previsto e estabelecido. Isso é o que chamamos de estilo. Espantamo-nos inconscientemente com a incrível força que uma obra tem de alterar nossa visão de vida, e isso é obra do estilo. Ora, sempre falta estilo nas experiências e influências da vida. Shunsuke não se curvava aos naturalistas, que consideram que a obra de arte reveste a vida de estilo ou, em outras palavras, procura oferecer a ela uma vestimenta pronta para usar. O estilo é o destino inato da arte. É preciso ter em mente que a experiência da obra e a experiência da vida diferem justamente quanto ao estilo. Nas experiências da vida, há apenas um elemento que é mais próximo da experiência de uma obra de arte. Essa experiência é a emoção que a morte nos causa."

MISHIMA, Yukio, 1925-1970. Cores Probidas (Kinjiki), Japão, 1951.