27 de outubro de 2014

Do Contrato Social

"IV – Da democracia.

Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo.

Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção dos alvos gerais para a concentrar nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do governo constitui um mal menor que a corrupção por parte do legislador, continuação infalível dos alvos particulares. Então, alterado o Estado em sua substância, toda reforma se torna impossível. Um povo que jamais abusaria do governo, também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.

Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá. Contraria a ordem natural o grande número governar, e ser o pequeno governado. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negócios públicos; e é fácil de ver que não poderia ele estabelecer comissões para isso, sem mudar a forma da administração.

Creio, com efeito, poder assentar em princípio que, quando as funções governamentais são partilhadas entre diversos tribunais, os menos numerosos adquirem cedo ou tarde a maior autoridade, se por outro motivo não fosse, pela facilidade com que expedem os negócios, ali levados naturalmente.

Ademais, que de coisas difíceis de reunir não supõe tal governo? Primeiramente, um Estado bastante pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes, que antecipe a multidão de negócios e as discussões espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas classes e nas riquezas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade; enfim, pouco ou nenhum luxo; porque ou o luxo é o efeito das riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e afasta do Estado todos os cidadãos, submetendo-os uns aos outros, e todos à opinião.

Eis por que um célebre autor afirmou que a virtude é o princípio da República, pois todas essas condições não subsistiriam sem a virtude; mas, à falta de haver feito as distinções necessárias, faltou por vezes a este belo talento precisão, e inclusive clareza, pois não viu que, sendo a autoridade soberana em toda parte a mesma, o mesmo princípio deve nortear qualquer Estado bem constituído, mais ou menos, é certo, de acordo com a forma de governo.

Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão freqüente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium.

Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente.  Tão perfeito governo não convém aos homens."

ROUSSEAU, Jean-Jacques; 1712-1778. Do Contrato Social. França, 1762.

13 de outubro de 2014

A História de Portugal

"Com a restauração das letras gregas e romanas, nos fins do seculo XV, o mundo antigo renasceu para uma vida em parte ficticia, em parte real. Ao passo que as tradições da jurisprudencia romana triumphavam emfim plenamente nas instituições politicas e civis das nações modernas, a republica ideal das letras organisava-se pelas condições de uma litteratura, cujos monumentos mais preciosos subsistiam ainda, mas cuja indole e espirito eram, até certo ponto, letra morta, porque não se podiam casar nem com os costumes, nem com as crenças da Europa moderna. O enthusiasmo pelos brilhantes vestigios de uma civilisação que passára, não tinha força para a fazer admirar e receber pelo commum dos homens, porque entre ella e o modo de existir destes havia insuperaveis antinomias. A idealidade christan, repellida do meio das classes illustradas, acolhia-se entre o vulgo; as formulas litterarias nascidas com a idade média, e que até ahi haviam acompanhado no seu desenvolvimento natural o  progresso da nova sociedade, viam-se condemnadas pelo desdem da aristocracia da intelligencia. Á historia, como a tudo o mais, chegou um periodo de transformação. As antigas chronicas portuguesas, como as de todas as outras nações da Europa, seguiam um methodo e estylo de narrar totalmente diverso dos livros historicos dos romanos e gregos: eram mais singelas e pinturescas; representavam-nos melhor a vida domestica: os caractéres dos personagens eminentes não no-los faziam comprehender com os traços rapidos e profundos que bastavam aos historiadores romanos, e de que as paginas de Tacito são o mais perfeito modelo; mas em compensação legavam-nos ingenuamente os dictos e feitos desses individuos, e habilitavam assim a posteridade a concluir das scenas altamente dramaticas, que registavam, uma synthese talvez menos profunda, mas de certo não menos verdadeira. Mais inhabeis que os historiadores antigos em assignalarem a relação dos acontecimentos com as suas causas e effeitos, e a attribuir a cada successo a sua importancia politica; reduzindo, como elles, a historia a uma arte sem objecto fóra de si, em vez de a considerarem como sciencia social destinada a enriquecer o futuro com a experiencia do passado, sabiam todavia aproveitar melhor certos toques que tornam mais faceis de imaginar, permitta-se-nos a expressão, as linhas, contornos e cores das epochas. Se, emfim, as narrações dos chronistas eram por uma parte triviaes, e até baixas, pelo habito que elles tinham de particularisar circumstancias minimas, faziam-nos por outra parte perceber mais claramente a indole real dos individuos ou da geração de que tractavam, ao passo que os historiadores antigos só nos apresentam os homens com os gestos e meneios convencionaes e estudados do foro, do senado, do templo, da solemnidade publica. O chronista da idade média, para nos pôr diante dos olhos os grandes vultos que passaram na terra, alevanta dos tumulos os seus cadaveres, e infunde-lhes de novo a vida', ao passo que o escriptor grego ou romano apêa dos pedestaes as estatuas dos homens publicos, correctas, porém frias e mortas, e como a estatua no banquete de D. João Tenorio, fa-las caminhar ante nós com um gesto solemne, mas inflexivel e pesado."

HERCULANO, Alexandre; 1810-1877. A História de Portugal. Tomo I, 2a edição. Lisboa, 1846.