4 de julho de 2023

Estética da Criação Verbal

"Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode se tornar mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que ocorre com maior frequência. O artista e o homem estão unificados em um indivíduo de forma ingênua, o mais das vezes mecânica: temporariamente o homem sai da "agitação do dia a dia" para a criação como para outro mundo "de inspiração, sons doces e orações". O que resulta daí? A arte é de uma presunção excessivamente atrevida, é patética demais, pois lhe cabe responder pela vida que, é claro, não lhe anda no encalço. "Sim, mas onde é que nós temos essa arte - diz a vida -, nós temos a prosa do dia a dia". (...) O sentido correto e não o falso de todas as questões antigas, relativas à inter-relação de arte e vida, à arte pura etc., é o seu verdadeiro patos apenas no sentido de que arte e vida desejam facilitar mutuamente sua tarefa, eximir-se da sua responsabilidade, pois é mais fácil criar sem responder pela vida e viver sem contar com a arte."

BAKHTIN, Mikhail. 1895-1975. Estética da Criação Verbal. 6a edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

27 de junho de 2023

Balada

"Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)."

FAUSTINO, Mario. 1930-1962. O homem e sua hora e outros poemas. Pesquisa e organização: Maria Eugenia Boaventura Editora Companhia das Letras: 2002.

5 de abril de 2023

Regresso Ao Lar

“Regressei, atravessei o salão e olho em volta. É a velha granja de meu pai. O charco no meio. Objetos velhos e imprestáveis misturados impedem a passagem para a escada do celeiro. O gato espreita da varanda. Um trapo esfarrapado, preso, certa vez, a uma barra, enquanto alguém brincava, agita-se ao vento. Cheguei. Quem haverá de me receber? Quem espera atrás da porta da cozinha? A chaminé fumega, estão preparando o café para a ceia. Sentes a intimidade, encontras-te como em tua casa? Não o sei, não estou certo. É a casa de meu pai, mas todos estão um junto ao outro, friamente, como se estivessem ocupados com seus próprios assuntos, que em parte esqueci e em parte não conheci jamais. De que posso lhes servir, que sou para eles, mesmo sendo o filho do pai, o filho do velho proprietário rural? E não me atrevo a chamar da porta da cozinha, e apenas escuto de longe, apenas de longe escuto, tenso sobre os meus pés, mas de maneira tal que não pudesse ser surpreendido a escutar.E porque escuto de longe, não percebo nada, salvo uma leve pancada de relógio, que ouço ou que talvez apenas creio ouvir, chegando-me desde os dias da infância. O mais que acontece na cozinha é segredo dos que ali estão sentados e que me ocultam. Quanto mais se hesita diante da porta, mais estranho alguém se sente. Que tal se agora alguém a abrisse e me fizesse uma pergunta? Porventura, eu mesmo não estaria, então, como alguém que deseja esconder o seu segredo?"

KAFKA, Franz, 1883-1924, conto “Regresso Ao Lar” (“Heimkehr”) provavelmente escrito entre novembro de 1923 e janeiro de 1924, tradução brasileira de 1968 publicada na coletânea A Muralha da China do Clube do Livro.