31 de dezembro de 2016

O Jogo das Contas de Vidro

"Permaneci uma hora ou hora e meia com o velho, eu não saberia transmitir-te o que se passou ou o que se comunicou entre nós, pois não pronunciamos palavra alguma. Senti apenas, depois que a minha resistência fora vencida, que ele me acolhia em sua paz e santidade e que uma serenidade maravilhosa e tranquila nos invadia, a ele e a mim. Sem que eu, consciente ou voluntariamente, procurasse meditar, tudo se comparava a uma meditação especialmente bem-sucedida e portadora de felicidade, cujo tema fosse a vida do Decano da Música. Eu o via, ou melhor, o sentia e a trajetória de sua evolução a partir daquele momento em que ele me encontrara, sendo eu um meninote, até o presente instante. Tinha sido uma vida de dedicação e trabalho, livre de compulsões e ambições, e cheia de música. E tudo se processou como se ele, tornando-se músico e Mestre de Música, tivesse escolhido a música como um dos caminhos à disposição do homem em busca de sua meta mais sublime, de sua liberdade interior, pureza e perfeição. Sua vida evoluiu, como se desde então ele nada mais tivesse a fazer senão deixar-se penetrar sempre mais intensamente pela música, transmutando-se e purificando-se. E assim impregnado pela harmonia musical, desde suas hábeis e inteligentes mãos de cimbalista, desde sua memória musical prodigiosa e potente até as últimas partes e órgãos do corpo e da alma, até na pulsação e na respiração, no sono e no sonho, ele agora era apenas um símbolo, verdadeiramente uma expressão, uma personificação da própria música. Pelo menos eu senti absolutamente como uma música aquilo que dele irradiava e que entre ele e mim oscilava como uma respiração ritmada. Era uma música totalmente imaterial, esotérica, que enfeitiçaria quem quer que caísse no seu encanto, do mesmo modo que uma peça polifônica aprisiona uma nova voz. Para quem não fosse músico a graça talvez se manifestasse em outras imagens, um astrônomo talvez se teria sentido como uma lua girando em torno de um planeta, um filósofo se teria sentido interpelado numa língua mágica e primitiva, que tudo pudesse significar. Por ora basta, já me despeço. Foi uma satisfação para mim, Carlo."

HESSE, Hermann, O Jogo das Contas de Vidro (Dar Glasperlnspiel), Alemanha, 1943.