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4 de julho de 2018

A Fugitiva

"Enquanto isso, relia sua carta e, apesar de tudo, me sentia decepcionado com o pouco que uma carta contém de uma pessoa. Sem dúvida, as letras traçadas exprimem nosso pensamento, como também o fazem nossos traços fisionômicos: é sempre diante de um pensamento que nos encontramos. Mas, apesar de tudo, na pessoa, o pensamento só nos aparece depois de se haver difundido nessa corola do rosto desabrochado como um nenúfar. Isso, afinal de contas, o modifica muito. E, talvez, uma das causas de nossas perpétuas decepções em amor esteja nesses perpétuos desvios que fazem com que, à espera da pessoa ideal a quem amamos, cada encontro nos traga, em resposta, uma pessoa de carne em que já existe tão pouco do nosso sonho. Depois, quando reclamamos algo dessa pessoa, dela recebemos uma carta em que da pessoa mesma resta muito pouco, tal como, nas letras de álgebra, já não existe a determinação das cifras da aritmética, as quais, por sua vez, não encerram mais as propriedades das flores ou dos Frutos somados. E contudo, o amor, a criatura amada, suas cartas, são talvez, afinal de contas, traduções (por menos satisfatório que seja passar de uma a outra) da mesma realidade, pois essa carta que nos parece insuficiente quando a lemos, nós suamos frio enquanto ela não chegava, e basta para acalmar nossa angústia, quando não para saciar, com seus sinaizinhos negros, nosso desejo que sabe muito bem que ali só existe, apesar de tudo, a equivalência de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não realmente essas coisas."

PROUST, Marcel, A Fugitiva (Albertine Disparue), França, 1927.

28 de dezembro de 2017

À Sombra das Raparigas em Flor

"Aqueles jovens Bergotte - o futuro escritor e seus irmãos e irmãs - não eram decerto superiores, antes pelo contrário, a outros jovens mais finos, mais espirituosos, que achavam os Bergotte muito barulhentos, até mesmo um pouco vulgares, irritantes com as suas brincadeiras características do 'gênero' metade pretensioso, metade simplório, da casa. Mas o gênio, e mesmo o grande talento, provém menos de elementos intelectuais e de afinamento social superiores aos alheios, que da faculdade de os transformar, de os transportar. Para aquecer um líquido com uma lâmpada elétrica, não se deve conseguir a lâmpada mais forte possível, mas uma cuja corrente possa deixar de iluminar, ser desviada e produzir, em vez de luz, calor. Para passear pelos ares, não é necessário ter o automóvel mais possante, mas um automóvel que, deixando de correr por terra e, cortando com uma vertical a linha que seguia, seja capaz de converter em força ascensional a sua velocidade horizontal. Assim, os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem no meio mais delicado, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflete, por mais medíocre que pudesse ser mundanamente e até, em certo sentido, intelectualmente falando, pois o gênio consiste no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido. No dia em que o jovem Bergotte pôde mostrar ao mundo de seus leitores o salão de mau gosto em que passara a infância e as conversas não muito divertidas que ali tivera com seus irmãos, nesse dia ele subiu mais alto que os amigos de sua família que eram mais espirituosos e mais distintos: estes, nos seus belos Rolls-Royce, poderiam voltar pra casa testemunhando certo desprezo pela vulgaridade dos Bergotte; mas ele, no seu modesto aparelho que afinal acabava de 'decolar', sobrevoava-os."

PROUST, Marcel, À Sombra das Raparigas em Flor (À L'ombre Des Jeunes Filles en Fleur), França, 1919.