6 de agosto de 2007

Tempo de roubar

"Amealhei tudo aquilo que se ganha com o povo, ao qual nada tirei a não ser a sabedoria. Fiz meu jogo. Sujo, limpo? Não experimente, Don Ramón, espreitar alguma vez o jogo dos virtuosos. Lidei com gente de todas as classes, de todos os setores, dos meios interditos a certos indivíduos. Fiz parte dessas camadas, dessas esferas onde até hoje se é monarca e amanhã se é bobo. Respirei sempre bem em qualquer altitude ou profundidade, pois sempre soubera apetrechar-se de pulmões e de guelras. Fui mais considerado onde mais tirava e mais esquecido nos pontos em que dava férias à minha arte. É preciso contar que, num mundo torto e achatado, nada se ganha em andar, parvamente, direitinho. Ninguém dá valor ao valor. Ninguém dá razão ao que falha, ao que soçobra. Ninguém dá razão ao pigmeu que foi justo. Mas todos levam aos ombros o gigante que foi bruto. Quando o meu isqueiro não acendia, eu usava fósforos, mas para as falhas dos homens tinha meu cão. Conhecia melhor os homens falando com ele. O silêncio dos cães enche uma casa e demonstra a inutilidade das frases que se ladram sem nexo."

FERNANDO, Santos. 1927-1975. Tempo de roubar. Lisboa: 1964.

Um comentário:

Pedro disse...

Caralhotes, adoro esse livro, mas achei tão pouco sobre o autor e o livro, tava pensando que era o único que tinha lido tempo de roubar.