27 de janeiro de 2011

O óbvio ululante

"Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a da releitura. Há uns poucos livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos. Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: 'O que é que você leu?'. Respondi: 'Dostoievski'. Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: 'Que mais?'. E eu: 'Dostoievski'. Teimou: 'Só?'. Repeti: 'Dostoievski'. O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura."

RODRIGUES, Nelson, 1912-1980. O Óbvio Ululante, crônica "Uma Banana como Merenda", Brasil, 1968.

(Agradecimento a Felipe Medeiros, do blog O Cantinho do Ócio - http://cantinhodoocio.blogspot.com)

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