24 de dezembro de 2009

História do Cerco de Lisboa

"Nos seus apontamentos para a carta a Osberno, notou Frei Rogeiro, embora de tal não viesse a fazer menção na redacção definitiva, uma minuciosa descrição da chegada do cavaleiro Henrique ao arraial da Porta de Ferro, incluindo certa alusão, pelos vistos irrefreável, a mulher que com ele vinha, Ouroana de seu nome, formosa como o amanhecer, misteriosa como o nascer da lua, foram expressões do frade, que a prudência disciplinar, por um lado, e o pudor parece que melindroso do destinatário, por outro, aconselharam a expungir. Ora, é bem possível que este e outros recalcados movimentos de alma tenham sido a causa, por via de sublimação, do cuidado com que Frei Rogeiro passou a acompanhar os ditos e feitos do cavaleiro alemão, antes, mas sobretudo depois da sua infeliz morte, mas não desgraçada, como a seu tempo se tornará patente. Em por claro, diremos que não podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites, não encontrou melhor exutório, salvo outro qualquer secreto, que exaltar até à desmedida o homem que se gozava do corpo dela. Da complexidade da alma humana tudo podemos esperar."

SARAMAGO, José, 1922-2010. História do Cerco de Lisboa, Portugal, 1989.

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